Casadas há 14 anos, as brasilienses Marília Serra e Vanessa Bhering tiveram de encarar um longo processo judicial para poder garantir a seus três filhos um direito básico: a identidade. A luta das duas foi semelhante a de centenas de outros casais que geraram seus bebês com uso de material genético doado, com ou sem barriga de aluguel, e tiveram de recorrer à Justiça para registrá-los com a filiação correta. Mas, agora, se cumprida decisão publicada nesta semana pela Corregedoria Nacional de Justiça, o registro de crianças geradas por reprodução assistida será automático no País.
O provimento é considerado uma conquista para as famílias que, antes, dependiam necessariamente do despacho de um juiz para poder registrar seus bebês, o que poderia levar até dois anos, segundo estimativa da vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam), Maria Berenice Dias. “Até a decisão final, a criança não tem nome, não entra no plano de saúde, não pode viajar ou ser matriculada em uma escola. Além disso, mães e pais não têm direito à licença parental”, diz.
Esta é uma demanda antiga de várias organizações, como a Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh) e o próprio IBDFam. “Impedir que o registro seja levado a efeito quando do nascimento viola um punhado de direitos fundamentais, entre eles o respeito à dignidade humana”, diz ofício encaminhado pela OAB à Corregedoria, que ainda destaca as “enormes discriminações” advindas da falta de regulamentação. “A negativa da anotação registral impede casais homoafetivos de realizar o sonho de serem pais, inviabilizando a realização do projeto pessoal de terem família e filhos.”
Marília e Vanessa planejavam ter a experiência da gravidez, com doador anônimo de sêmen. O primogênito, Samuel, nasceu em 2011, depois de ser gestado por Vanessa. No ano seguinte, Marília deu à luz aos gêmeos Mateus e Felipe. Na letra fria da lei, Samuel era enteado de Marília e os caçulas, de Vanessa. “O que mais nos incomodou foi a situação insólita de, pela inexistência de instrumentos jurídicos mais precisos, termos tido de adotar nossos próprios filhos”, afirma Marília. “Há casais que acham uma afronta entrar no processo habitual de adoção, optando por outras vias judiciais. Mas achamos que seria o caminho mais rápido, queríamos resolver isso logo”, completa Vanessa.
A decisão judicial favorável saiu em janeiro de 2015, após mais de um ano em tramitação. Elas receberam visitas de assistente social e tiveram de provar, perante um juiz, que eram uma família. Responderam a perguntas como tempo de duração do relacionamento e métodos usados para engravidar. “Foi até bem simples. Mas, se já houvesse a norma, seria uma chateação a ser evitada”, diz Vanessa.
Na frente
Os estados de Mato Grosso e Bahia já tinham o registro regulamentado desde 2014, assim como a cidade de Santos, que publicou portaria semelhante no ano passado. Mas só agora a norma é válida para todo o território nacional. “Isso reduz o número de processos e também é fundamental para as famílias. O principal beneficiário do provimento é a criança, que tem reconhecido o seu direito de identidade”, afirma Maria Berenice Dias, especialista em Direito homoafetivo.
O documento da OAB assinado por ela salienta que “não mais se pode mais fechar os olhos para a evolução da sociedade e suas mudanças. O Estado tem o dever de proteger as crianças”. A carta também cita a Constituição Federal, que “ampliou o conceito de família”, contemplando o princípio da igualdade de filiação.
Na certidão dos filhos de homoafetivos o documento deverá ser adequado para que seus nomes constem sem distinção quanto à ascendência paterna ou materna, inclusive para o campo dos avós. Os oficiais registradores não poderão se recusar a registrar uma criança, sob pena de repreensão, multa, suspensão ou até mesmo perda do cargo.
Gays
Para o secretário da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, o avanço é mais um passo para a “conquista da cidadania plena” dos homossexuais, que cada vez mais, segundo ele, têm desejado ter filhos, precisando encarar uma “dolorosa espera” pela Justiça. “Estamos caminhando lentamente. Enquanto o Judiciário colabora com decisões como essa, nosso Legislativo ainda prefere não tocar no tema, pecando pela omissão e ‘invisibilizando’ a comunidade gay”, afirma.
Fonte: Estadão