Artigo: A lei 13.286/2016 e a responsabilidade subjetiva dos notários e registradores no exercício da atividade típica – Por Vitor Frederico Kümpel e Rodrigo Pontes Raldi

Na última terça-feira, 10 de maio, foi publicada a Lei 13.286/16, que modifica a responsabilidade civil dos notários e registradores no exercício de sua atividade típica, alterando pela segunda vez a redação do art. 22, da lei 8.935/1994 [1]. Trataremos desse tema, na coluna de hoje, em razão de sua atualidade e da extrema relevância que representa para a prática notarial e registral, pondo fim à discussão acerca da responsabilidade de tabeliães e registradores. Nas próximas colunas quinzenais, daremos continuidade à série de artigos que versam sobre as mudanças implementadas pelo novo Código de Processo Civil em matéria notarial e registral.

 

A questão da responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores era controversa e durante muito tempo tem ocasionado discussões acirradas, sobretudo quanto à necessidade de demonstração da culpa dos sujeitos incumbidos do exercício da atividade eminentemente pública por delegação, nos termos do art. 236, da Constituição Federal.

 

Nesse contexto, surgiram diferentes correntes que buscavam explicar a natureza dessa responsabilidade. Em primeiro lugar, há o posicionamento majoritário dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, acompanhado por parte da doutrina [2], de que os tabeliães e oficiais de registro são funcionários públicos, ainda que o exercício de seus serviços se dê em caráter privado, de modo que o Estado deve responder objetivamente pelos danos causados por estes sujeitos aos usuários do serviço. Está em tramitação perante o STF o Recurso Extraordinário 842.846-SC [3], ao qual foi reputada repercussão geral, para se decidir acerca da responsabilidade civil do Estado em caso de serviços delegados, bem como da natureza da responsabilidade civil de notários e registradores (se objetiva ou subjetiva).

 

Quanto à responsabilidade pessoal dos notários e registradores, havia duas correntes centrais. A primeira apontava para responsabilidade objetiva com fundamento na redação e gramaticidade do art. 22, da lei 8.935/1994 [4], posteriormente alterada pela lei 13.137/2015. "Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos". A redação permitia a interpretação de que a responsabilidade dos oficiais de registro e tabeliães independia de aferição da culpa na contratação dos prepostos, bem como da negligência destes durante a prática dos atos.

 

Adotava a legislação, portanto, a teoria do risco, imputando ao titular responsabilização objetiva e garantindo regressividade contra quaisquer dos seus serventuários apenas em caso de dolo (culpa lato sensu) ou culpa stricto sensu (leve ou levíssima).

 

A segunda corrente sustentava a incidência de responsabilidade pessoal subjetiva de notários e registradores [5], mediante uma interpretação contextual fulcrada principalmente no art. 38, da lei 9.492/1997, interpretando-o analogamente aos oficiais de registro: "Os Tabeliães de Protesto de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso". Por ser a Lei 9.492/97 superveniente, incidiria para todos os titulares de delegação, alterando, portanto a teleologia da lei 8.935/94, cuja redação originária remonta 1994 [6].

 

Crítica a essa corrente pode ser feita na medida em que, pelo fato de a lei 9.492/1997 regular especialmente os Tabeliães de Protesto de Títulos, o art. 22, da lei 8.935/94 continuaria em vigor em relação aos oficiais de registro e demais tabeliães, porquanto não expressamente revogado pela lei posterior, bem como não conflitante com suas disposições, no que tange os demais prestadores de serviços notariais e registrais.

 

Com a nova redação dada ao art. 22 da lei 8.935/1994, pela lei 13.286/16, cessa-se a polêmica quanto à responsabilidade pessoal do oficial de registro e notário, os quais responderão subjetivamente por danos causados no exercício da atividade típica: "Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso".

 

Importante diferenciar, no entanto, dano decorrente do exercício de atividade típica de registro, que consiste em qualificar títulos, devolvê-los ou assentá-los; ou, no caso do tabelião, instrumentalizar a vontade das partes de modo a gerar eficácia, da atividade atípica, anexa ao serviço registral e notarial. Apenas em relação à primeira aplicam-se as regras do art. 22, da lei 8.935/1994 (responsabilidade subjetiva). Ocorrendo o dano em razão da relação de consumo criada entre os prestadores e o usuário (por exemplo, se o usuário escorrega e se machuca no interior do ofício), aplicam-se as regras de responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor (diálogo das fontes).

 

Sem sombra de dúvida a lei gera um avanço, na medida em que proporciona a notários e registadores a possibilidade de ousarem mais na prática de seu ofício. O notário rompe o liame causal no exercício da atividade e, portanto, mitiga efeitos indenizatórios quando informa minuciosamente os efeitos ao usuário, fazendo constar informações adicionais nas escrituras públicas. Já o registrador, para quebrar o nexo causal, pode qualificar negativamente o título, que resta submisso à duvida registral, ocasião em que a responsabilidade passa ao Estado.

 

Concluindo, a nova redação dada ao art. 22, da lei 8.935/1994 põe fim à controvérsia acerca da responsabilidade civil de notários e registradores por dano causado aos usuários na prática da atividade pública a eles delegada. Tratando-se, porém, de dano causado por atividades anexas à notarial e registral, muitas vezes criadas em razão de uma relação jurídica de consumo entre oficial e usuário, a responsabilidade será objetiva, nos termos do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor.

 

O tema é bastante importante e controverso, e merece ser esmiuçado em sede própria. Ademais, a questão da responsabilidade subsidiária ou solidária do Estado por esses danos também deverá ser analisada em artigo próprio, porquanto complexa e controversa, lembrando-se que a questão será decidida em breve pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da Repercussão Geral em Recurso Extraordinário 842.846-SC.

 

 

[1] Já havia sido alterado pela lei 13.137/2015.

 

[2] S. S. Venosa, Reponsabilidade Civil, 14a ed., São Paulo, Atlas, 2014, pp. 302 ss.

 

[3] "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. DANO MATERIAL. OMISSÕES E ATOS DANOSOS DE TABELIÃES E REGISTRADORES. ATIVIDADE DELEGADA. ART. 236 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RESPONSABILIDADE DO TABELIÃO E DO OFICIAL DE REGISTRO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CARÁTER PRIMÁRIO, SOLIDÁRIO OU SUBSIDIÁRIO DA RESPONSABILIDADE ESTATAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA OU SUBJETIVA. CONTROVÉRSIA. ART. 37, § 6º, DA CRFB/88. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA". (STF, RE n. 842.846-SC, rel. Min. Luiz Fux, j. 6.11.2014).

 

[4] Art. 22, Lei n. 8.935/1994: "Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática dos atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos"

 

[5] S. Cavalieri Filho, Programa de Responsabilidade Civil, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 2014, p. 307.

 

[6] Art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: "Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".

 

 

 

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

 

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.


 

 

Fonte: Migalhas