A história dos homens que não existiam – Diário de Pernambuco

Ele nasceu Nelson. Em um distante ano de 1938. Quando criança, costumava fugir de casa. Ficava dias liberto nas ruas, longe da madrasta, com quem não se dava bem. Um dia, a família achou por bem deixar Nelson em um hospital destinado a pessoas com transtorno mental. Depois daquele dia, esse ambiente seria sua casa para sempre.

 

Nelson Félix dos Santos, 80 anos, é o paciente mais antigo do Hospital Colônia Vicente Gomes de Matos, em Barreiros, onde chegou quando tinha apenas 22. A história do homem cujas paredes hospitalares viraram residência é ainda mais dramática. Somente este mês ele passou a existir oficialmente.

 

O caso do idoso chegou às mãos da defensora pública Lêda Pessoa junto com as histórias de outros 39 pacientes do hospital de Barreiros, na Mata Sul. Em 2013, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) entrou com medida de proteção em favor dos habitantes da unidade de saúde. A promotoria pedia providências à Justiça quanto à necessidade de fazer o registro tardio do grupo. O hospital tem 75 pacientes homens de longa permanência e abandonados pelas famílias há décadas.

 

No ano passado, diante da lentidão do processo, a direção do hospital acionou a Defensoria Pública. Lêda, que é coordenadora de Defesa dos Direitos da Minoria, entrou no caso. Após um longo trabalho de garimpagem, obteve o registro de nascimento para as 40 pessoas. Desde o início do processo, em 2013, até hoje, 13 pacientes da lista morreram sem ver o valioso documento. Agora, o registro permitirá que essas pessoas possam ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), cujo valor é de um salário mínimo.

 

O trabalho de Lêda Pessoa consistiu em buscar algum tipo de passagem dos pacientes pelo Instituto Tavares Buril (ITB), Justiça eleitoral e cartórios onde essas pessoas poderiam ter sido registradas pelos pais. "Quando falei do caso de Nélson, a equipe do ITB não acreditou que uma pessoa daquela idade existisse sem registro de nascimento." Ao longo da investigação, a defensora descobriu somente três pacientes com registro em cartório. Os demais nunca tinham sido registrados. "Eles precisam existir como pessoas. É um direito deles", pontuou Lêda Pessoa.

 

O alto nível de exclusão social, seja pela doença ou ausência de um registro, é uma marca infeliz para esses homens. Moizés Barros da Silva, 67, é natural de Aliança. Diagnosticado com esquizofrenia, foi encaminhado do Hospital Alberto Maia, em Camaragibe, para Barreiros há oito anos. Moizés é evangélico e, para ele, o registro faz toda diferença porque somente assim poderá ser batizado na igreja. “Eu vivia no mundo jogado, feito cachorro. Hoje não sou mais um cachorro. Agora é seguir em frente sem olhar para trás.”

 

Edi Bonfim Xavier, 40, vivia em situação de rua em Caruaru. Há 13 anos, foi levado para uma clínica psiquiátrica naquele município e de lá terminou transferido para Barreiros. Somente agora, ganhou nome em documento. No hospital, quando o paciente chega sem referência familiar e não tem condições de passar informações suficientes sobre a própria história por conta do comprometimento mental, a equipe constrói um prontuário a partir do máximo de dados obtidos. Algo mais comum do que se imagina.

 

Hospital fecha portas em dezembro

 

O Hospital Colônia Vicente Gomes de Matos será o primeiro sob gestão do governo do estado a promover a desinstitucionalização dos pacientes, situação prevista pela reforma psiquiátrica, através da lei 11.064 de 16 de maio de 1994. Até agora, somente passaram pelo processo as unidades privadas que atuavam em convênio com o SUS, ao todo 16. Até dezembro, os 75 pacientes serão encaminhados para residências terapêuticas de São Lourenço da Mata, Catende, Serra Talhada, Moreno, Cabo de Santo Agostinho, Barreiros, Palmares e Paudalho.

 

"Para nós, o manicômio é excludente, não é saudável para ninguém", comentou a diretora da unidade, Norma Cassimiro. A equipe da unidade tentará encaminhar os pacientes em grupos cujos integrantes têm maior afinidade entre eles. Pessoas como Moizés, que já têm uma vida social construída em Barreiros, frequenta a igreja, tem amigos, além de liberdade de ir e vir dentro do hospital, devem permanecer no município.

 

"Quero morar em um canto com tranquilidade, com liberdade", disse Nelson. Na mudança, levará junto com ele José de Melo, 52, cuja história no hospital começou em 1974. Ele era uma criança quando a mãe foi presa e encaminhada para o Hospital Ulisses Pernambucano, na Tamarineira, depois de jogar uma pedra em um carro. Sozinho e com uma deficiência física que o prende até hoje a uma cama, José passou a vida em hospitais. Está em Barreiros mesmo sem ter transtorno mental. Lá, precisa da ajuda de Nelson para tudo, o que inclui banho e alimentação.

 

Edi planeja morar sozinho. "Vou comprar feijão e arroz e cozinhar." As residências terapêuticas são destinadas a pessoas com transtorno mental que permaneceram em longas internações psiquiátricas e sem possibilidade de voltarem para suas famílias. Nas casas, os pacientes são atendidos pela rede de assistência do bairro, onde precisam ter o máximo de autonomia para voltarem a viver com outras pessoas.
 

 

 

Fonte: Diário de Pernambuco