No regime legal da comunhão parcial de bens, como se sabe, podem-se formar e coexistir, em regra, três patrimônios distintos: o pessoal do marido, o pessoal da mulher e o comum. Mesmo bens adquiridos durante o casamento poderão integrar um acervo de bens pertencente exclusivamente ao marido, ou exclusivamente à mulher. Nem todos os bens de aquisição contemporânea à convivência pertencerão a ambos os cônjuges, devendo-se observar as exceções legais.
Nesse aspecto, o legislador do Código Civil foi claríssimo, nos artigos 1.659 e 1.660, quando estabeleceu quais bens entrariam na comunhão e os que dela estariam excluídos, entre os quais os chamados “instrumentos de profissão”.
Observa Paulo Luiz Netto Lobo que a lei presume que os “instrumentos da profissão foram adquiridos com recursos do próprio cônjuge. Essa presunção é absoluta, e o interessado não pode fazer prova da origem conjunta dos recursos correspondentes”[1].
Especificamente sobre os instrumentos da profissão, explica Carvalho Santos constituir fundamento dessa incomunicabilidade o fato de os “instrumentos da profissão não serem susceptíveis de penhora”[2]. Segundo Pontes de Miranda, essa restrição tem origem insigne, qual seja, a doutrina quanto aos livros dos estudantes, professores, advogados e magistrados, que se equiparariam às armas dos militares: “O critério é a profissão, – tudo quanto seja necessário a ela”.[3] A presunção de necessariedade ou utilidade é absoluta, não cabendo, segundo Pontes, sequer apurar “se, sem os livros, as máquinas, utensílios ou instrumentos, poderia ganhar a vida o executado”[4].
Afirmando que a única exigência é que o bem esteja ligado à atividade profissional, o autor citava os exemplos da máquina de escrever e do cofre em relação ao advogado, considerando “mal aparelhado o escritório em que qualquer deles falte”, bem como “o automóvel do médico e de pessoas que tenham de exercer a profissão locomovendo-se”[5].
Na jurisprudência, colhem-se numerosos escólios no sentido, tanto de que os instrumentos da profissão são absolutamente impenhoráveis, como, exatamente por isso, não entram na comunhão, mesmo quando adquiridos durante o casamento. São remansosos os arestos que reconhecem, por exemplo, a inexistência de meação em relação a equipamentos médicos de alto valor, adquiridos pelo cônjuge médico enquanto casado em regime de comunhão, pois o artigo 1.659 do Código Civil exclui expressamente da comunicação os “bens caracterizados como instrumentos de profissão no regime da comunhão parcial, sem mencionar qualquer restrição relacionada com o valor do objeto”[6].
Igualmente frequentes as decisões que afastam a comunicabilidade de veículo utilizado como táxi (ainda que constitua o único patrimônio da família), e do respectivo ponto, ao argumento de que constituem instrumentos indispensáveis ao exercício profissional do outro cônjuge, sob pena de privá-lo “dos meios que lhes asseguram a sobrevivência”[7]. O mesmo se diga em relação ao caminhão utilizado exclusivamente pelo cônjuge-varão em seu trabalho de caminhoneiro.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, já se decidiu que a incomunicabilidade, no caso, “justifica-se pela manifesta conveniência de não privar o profissional dos meios de que carece para seu exercício, o que ocorreria com a separação e consequente divisão do patrimônio, não existisse a ressalva legal. Supõe o efetivo exercício profissional, deixando de justificar-se quando esse deixou de existir. Em caso de abandono da profissão ou de morte, não subsiste razão para a incomunicabilidade”[8].
Tomando como exemplo o advogado, cada vez menos se pode restringir os instrumentos de trabalho aos livros profissionais ou mesmo ao computador do escritório, devendo-se considerar, da mesma forma abrangida entre os ferramentais dessa atividade, a sociedade de advogados, que é constituída justamente para “permitir ou facilitar a ‘colaboração recíproca’ entre si dos sócios-advogados e demais advogados a ela vinculados, ‘para a disciplina do expediente e dos resultados patrimoniais auferidos na prestação dos serviços’ por eles individualmente realizados para seus clientes, como enunciava o artigo 77, caput, da Lei 4.215/1963”[9].
Idêntico raciocínio se aplica a qualquer profissional liberal que exerça a sua profissão por intermédio de uma pessoa jurídica não empresária. A sociedade (pluri ou unipessoal) ou a Eireli existirão, nesses casos, para apoiar a atividade dos profissionais e facilitar-lhes o trabalho. Nos dias atuais, sem essa colaboração recíproca, é praticamente impossível o exercício da profissão por qualquer profissional liberal, especialmente em razão da pesada carga tributária que onera as pessoas físicas.
Tendo em vista as grandes transformações no exercício das atividades intelectuais, os profissionais liberais, quer sejam advogados, médicos, contadores ou outros especialistas não conseguem mais desempenhar sua atividade laboral de forma isolada, por meio apenas das suas respectivas personalidades naturais. Dificilmente conseguem exercer o seu ofício em caráter personalíssimo ou exclusivamente artesanal, sem se organizarem em uma pessoa jurídica.
Aliás, com o fenômeno da chamada “pejotização”, por meio do qual as empresas passaram a contratar os seus colaboradores na condição de pessoas jurídicas, para exercerem atividades semelhantes àquelas desempenhadas pelos empregados contratados pelo regime da CLT, praticamente não existem mais profissionais liberais que não tenham constituído uma PJ e obtido inscrição no CNPJ [10].
Assim, a partir dessa evolução verificada na forma de se exercer a profissão liberal, é de se concluir que tanto a sociedade simples uniprofissional e suas respectivas cotas sociais, como a sociedade limitada unipessoal e a Eireli do profissional liberal, passaram a integrar a categoria jurídica de instrumentos da profissão. É por meio de tais personalidades jurídicas que a pessoa natural do advogado, do médico, do contabilista, do arquiteto ou de qualquer outro que exerça profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, labora e garante a sua subsistência. Como a pessoa jurídica não exerce uma profissão, nas sociedades de profissionais liberais a personalidade jurídica só existe e foi constituída em razão da atuação personalíssima de seus sócios ou titulares.
Em resumo, no regime de comunhão parcial de bens, são incomunicáveis, em razão da natureza jurídica de instrumentos da profissão, tanto as cotas sociais, como a sua expressão econômica, em sociedades simples uniprofissionais, formadas por profissionais liberais que desempenham profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, nos termos do parágrafo único do artigo 966 do Código Civil.
Os instrumentos da profissão do profissional liberal são aqueles bens que ele emprega no exercício de sua atividade e não podem ser partilhados. A sociedade ou a Eireli, nesses casos, se confundem com o labor pessoal e por isso se excluem da partilha. O que pode eventualmente ser partilhado é o resultado dessa atividade produzido até a data da separação de fato, depois de efetivamente distribuído ao sócio, nunca as próprias cotas, que constituem instrumentos da profissão.
[1] Código Civil Comentado. Vol. XVI. São Paulo: Atlas, 2003, p. 288.
[2] CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código civil brasileiro interpretado. Vol. V. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, p. 70.
[3] PONTES DE MIRANDA. Comentários ao CPC. Tomo XIII, 1961, p.290.
[4] Idem.
[5] Op. cit., p. 291.
[6] (*)DIREITO DE FAMÍLIA. DIVÓRCIO. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. BENS DE TERCEIROS. PARTILHA DESCABIDA – No regime da comunhão parcial de bens comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento, sendo descabida a pretensão de partilha de patrimônio registrado em nome alheio, alienado ainda durante a vigência da sociedade conjugal ou adquirido posteriormente ao seu término. PARTILHA DE BENS – EQUIPAMENTOS MÉDICOS – INSTRUMENTO DE PROFISSÃO – CC, ART. 1.659, V, IN FINE – EXCLUSÃO Prevê o art. 1.659 do Código Civil a expressa exclusão da comunicação de bens caracterizados como instrumentos de profissão no regime da comunhão parcial, sem mencionar qualquer restrição relacionada com o valor do objeto. (…) (TJSC; AC 0017899-21.2008.8.24.0023; Florianópolis; Quinta Câmara de Direito Civil; Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros; DJSC 05/07/2018; Pag. 205) (**) APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÕES DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL, ARROLAMENTO DE BENS E CAUTELAR INOMINADA. SENTENÇA DECRETANDO O FIM DA RELAÇÃO CONJUGAL E PARTILHANDO OS BENS ADQUIRIDOS DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL. CONTRARRAZÕES DA RÉ. ALEGAÇÃO DE INOVAÇÃO RECURSAL QUANTO AO PLEITO DE EXCLUSÃO DE BENS DA PARTILHA. INOCORRÊNCIA. MATÉRIA DEVIDAMENTE DISCUTIDA. Não há inovação recursal quando a tese sustentada no apelo, de exclusão de bens da partilha, foi discutida nos autos. APELO DO AUTOR. EQUIPAMENTO DE ULTRASSONOGRAFIA ADQUIRIDO PELA RÉ DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL. INSTRUMENTO INDISPENSÁVEL PARA O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DE MÉDICA/RÉ. EXCLUSÃO DO BEM DA PARTILHA. ART. 1.659, V, DO Código Civil. De acordo com o art. 1.659, inciso V, do Código Civil, os instrumentos indispensáveis para o exercício da profissão são excluídos da partilha de bens. Assim, comprovado que o equipamento de ultrassonografia foi adquirido pela Requerida para aperfeiçoar a prestação de serviços de radiologia, em seu consultório médico, está configurado que o bem é essencial para o desenvolvimento da profissão dela, devendo ser expurgado do rol de bens a ser partilhado. (…) (TJMG; APCV 1.0024.09.735393-2/001; Rel. Des. Eduardo Guimarães Andrade; Julg. 16/04/2013; DJEMG 25/04/2013). (***)AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA. BENS ÚTEIS OU NECESSÁRIOS AO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE EMPRESARIAL. IMPOSSIBILIDADE. ART. 649, V, DO CPC. O art. 649, V, do Código de Processo Civil estabelece a impenhorabilidade absoluta dos livros, máquinas, ferramentas, utensílios, instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão. Outrossim, não se pode perder de vista que a própria Lei Processual Civil elenca outros meios eficazes para a satisfação do crédito. Nessa senda, o art. 655 do CPC indica, para efeito de penhora, o dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, ações e quotas de sociedade empresárias e percentual de faturamento de empresa devedora. Reclamação conhecida e improvida. (TJDF; Rec 2013.00.2.030643-0; Ac. 770.768; Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal; Rel. Juiz Alvaro Luiz Chan Jorge; DJDFTE 01/04/2014; Pág. 355)
[7] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DIVÓRCIO LITIGIOSO C/C PARTILHA DE BENS. FALECIMENTO DO ADVOGADO ORIGINÁRIO. DESNECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DE NOVO PATRONO. EXISTÊNCIA DE SUBSTABELECIMENTO NOS AUTOS. DECISÃO REFORMADA NO PONTO. PEDIDO DE PARTILHA DE PONTO DE TÁXI. IMPEDIMENTO. SERVIÇO PÚBLICO SUJEITO À PERMISSÃO ADMINISTRATIVA. INEXISTÊNCIA DE POSSE E OU PROPRIEDADE. REQUERIMENTO DE DIVISÃO DE VEÍCULO DE TAXISTA. INSTRUMENTO NECESSÁRIO AO EXERCÍCIO PROFISSIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE PARTILHA. ART. 1.659, INCISO V, DO CC/2002. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (…) Inviável a partilha de ponto de táxi entre as partes em uma separação judicial, pois não há que se falar em propriedade de quem quer que seja, vez que existe somente alvará de licenciamento para prestação de serviço de táxi, que, por sua vez, é tratado como serviço público sujeito à permissão administrativa. Embora o alvará possua valor econômico, constitui direito sobre o qual não se exerce posse, mas exercício. Os instrumentos de profissão não podem ser objeto de partilha, isso porque se excluem da comunhão os instrumentos indispensáveis ao exercício profissional de cada cônjuge, sob pena de privá-los dos meios que lhes asseguram a sobrevivência, conforme dispõe o artigo 1.659, V, do CC. (TJMT; APL 57908/2017; Alta Floresta; Rel. Des. Dirceu dos Santos; Julg. 30/08/2017; DJMT 05/09/2017; Pág. 82)
[8] REsp 82.142/SP, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/12/1997, DJ 12/04/1999, p. 142.
[9] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedade de advogados. 6ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Lex Editora, 2015, p. 37.
[10] Após a última reforma trabalhista de 2017, a legislação (Lei da Terceirização – Lei n. 13.429/17) passou a permitir que se terceirize a atividade fim da empresa, o que facilitou a substituição de empregados pessoas naturais por pessoas jurídicas individuais ou unipessoais, eliminando a necessidade de pagamento de encargos trabalhistas.
Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).
Fonte: Conjur
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