Artigo – Anotações acerca das separações e divórcios extrajudiciais – por Luiz Felipe Brasil Santos

1. Na aparente singeleza de seus cinco artigos, a Lei n°11.441/07, em vigor desde 5 de janeiro do corrente, tem suscitado inúmeras indagações, especialmente no que se refere às separações e divórcios.
 
Insere-se esse diploma na concepção que visa eliminar a intervenção do Poder Judiciário em relações jurídicas de conteúdo exclusivamente patrimonial, entre pessoas maiores e capazes, e que, por isso, não carecem da tutela do Estado-Juiz para deliberar acerca de suas opções existenciais, resguardando-se essa função estatal apenas para aquelas situações conflitivas para cujo desate se torne indispensável um ato jurisdicional de poder.
 
Corresponde, por igual, à necessária racionalização da atividade jurisdicional, notoriamente congestionada. Nessa perspectiva, no entanto, extremamente reduzido será o impacto da nova lei.  Primeiro, porque a formalização das separações e divórcios pela via extrajudicial é uma mera faculdade das partes. Desse modo, permanecem abertas as portas do Poder Judiciário a quem desejar realizar o procedimento tradicional em juízo. Segundo, porque, dentro da massa de processos, as separações e divórcios consensuais representam um percentual muito reduzido. Tomando-se como referência o ano de 2005, no Estado do Rio Grande do Sul, ingressou no primeiro grau um total de 820.458 novos processos cíveis[1]. Destes, separações e divórcios consensuais somaram 12.665[2], o que significa apenas 1,54% do total de feitos cíveis ajuizados naquele ano. E nesse total estão abrangidos pleitos onde havia filhos menores (que são, aliás, a grande maioria), os quais continuarão necessariamente a ter andamento em juízo, conforme a nova lei. Desse modo, na melhor das hipóteses, o impacto da desjudicialização dos procedimentos acarretará uma redução de, no máximo, 0,5% sobre o total de processos cíveis ingressados.
 
2. No Estado do Rio Grande do Sul, a Corregedoria-Geral da Justiça regulamentou a matéria por meio do Provimento 04/2007, de 18 de janeiro último, que, introduzindo modificações na Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR), tratou de orientar os Tabeliães acerca das providências necessárias à efetivação do comando legal.
 
3. Somente será possível o acesso à via extrajudicial para obter separações e divórcios quando houver consenso e o casal não possuir filhos menores ou incapazes, restringindo-se o pacto, desse modo, a cláusulas de conteúdo exclusivamente afeto a interesses patrimoniais (com exceção da disposição relativa ao uso do nome, que escapa a essa categoria). Filhos emancipados não constituem óbice a que se promova o distrato por essa forma.
 
4. Dispensada a presença do magistrado e, conseqüentemente, a intervenção do Ministério Público, redobra a responsabilidade do advogado, cuja atuação na formalização do ajuste é indispensável (art. 1.124-A, § 2°, do CPC, na redação da Lei nº 11.441/07) e decisiva. Compete-lhe esclarecer minuciosamente o casal acerca das cláusulas do pacto e suas repercussões futuras, especificamente no que se refere à partilha de bens, aos alimentos e ao uso do nome.

Dada a relevância dessas questões, devem ser evitados ajustes precipitados, muitas vezes fruto da intensa emotividade que emana da ruína das relações conjugais. A reflexão objetiva, tanto quanto possível desapaixonada – o que só se obtém com a maturação do tempo -, é sempre a melhor conselheira. Ajustes mal finalizados, que depois se constata não corresponderem à real intenção dos contratantes, podem ser desastrosos, só restando posteriormente a via judicial para sua desconstituição, o que será viável apenas quando demonstrado vício de vontade.
 
5. Como ocorre em juízo, o casal poderá estar representado por um único advogado, ou cada um deles contratar o seu profissional, tudo dependendo, é claro, do grau de confiança recíproca. Na escritura deverá constar a qualificação completa do profissional, com menção do respectivo número de inscrição na OAB. Não há necessidade de apresentar procuração em instrumento apartado, podendo o mandato ser outorgado na própria escritura de separação ou divórcio.
 
6. Embora a lei não seja expressa, é evidente que tanto o divórcio direto como aquele por conversão poderão ser realizados pela forma nela prevista. É que não há razão alguma para restringir esse procedimento simplificado apenas ao divórcio direto, sobretudo considerando que o divórcio por conversão em geral é bastante mais singelo, pois as cláusulas do ajuste já foram pactuadas ao ensejo da separação. O fato de a separação ter sido feita em juízo não impede que a conversão em divórcio o seja na forma extrajudicial. O contrário também é verdadeiro, até porque eventual consenso que tenha permitido a separação pela via extrajudicial pode vir a se romper no momento da conversão em divórcio, impondo que esta se faça mediante processo.
 
7. Em se tratando de divórcio direto, a prova da separação de fato por período superior a dois anos (exigência do § 2° do art. 1.580 do Código Civil) será feita pelo depoimento de uma testemunha, cuja declaração, qualificação e assinatura devem constar na escritura. Essa prova poderá ser produzida também por declaração escrita de uma testemunha, com firma reconhecida por autenticidade (art. 619-F da CNNR, na redação do Provimento 04/07-CGJ), ficando arquivada em cartório. Resta afastada, portanto, a possibilidade de fazer prova da separação de fato exclusivamente mediante prova documental, cuja avaliação seria, no caso, subjetiva e, por isso, não deve ficar a cargo do Tabelião.
 
8. Embora haja quem sustente que os contratantes podem se fazer representar por procurador[3], dispensando-se sua presença ao ato, não comungamos desse entendimento. E isso pelas mesmas razões que levaram o legislador do CPC (art. 1.122, “caput” e § 1°) a, no processo judicial, exigir a audiência de ratificação do pedido, com a presença do casal desavindo perante o magistrado, oportunidade em que ambos devem ser ouvidos e manifestar sua intenção de não mais manter a sociedade conjugal e/ou o vínculo matrimonial, quando, somente então, poderá ser homologado o pleito. Ora, se no processo judicial, onde maiores são as cautelas, com a presença do magistrado e do Ministério Público, o comparecimento pessoal das partes é indispensável, não se ostenta prudente dispensá-lo justamente quando revestida de menor fiscalização a formalização do acordo.
 
Em boa hora, o Provimento 04/07 da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul adotou essa cautela em mais de um dispositivo. Assim, o art. 619-C, § 4°, da CNNR, introduzido por aquele ato, dispõe que os cônjuges comparecerão pessoalmente para a lavratura do ato notarial, inadmitida a sua representação por procuração. Mais adiante, o § 5° determina que a falta de anuência de uma das partes quanto a qualquer das cláusulas apresentadas, ou a recusa de alguma pretensão que objetivava ver consignada, impedirá a realização do ato, devendo, então, ser informada pelo tabelião a possibilidade de ingresso na via judicial. Por fim, o parágrafo único do art. 619-E, estabelece que havendo fundados indícios de prejuízo a um dos cônjuges ou existindo dúvida sobre a declaração de vontade, impõe-se a negativa à lavratura da escritura pública de separação ou divórcio (grifo meu). Ora, somente com a presença do casal é que o tabelião poderá conferir a anuência plena, esclarecida e consciente com todas as cláusulas do pacto (cujos termos e conseqüências deverão ser explicados em todos os seus detalhes, no ato) e verificada eventual dúvida quanto à declaração de vontade.
 
9. Embora silente a lei, é razoável concluir que também por escritura pública poderá se dar o restabelecimento da sociedade conjugal, apesar de o art. 1.577 do Código Civil fazer menção a que esta providência deva ser realizada por ato regular em juízo. É que aqui se reclama uma interpretação sistemática, partindo-se da constatação de que quando o Código Civil entrou em vigor não havia previsão de separação extrajudicial. Logo, sendo exclusivamente judicial – como era então – a dissolução da sociedade conjugal, por simetria assim deveria ser seu restabelecimento. Agora, com a desjudicialização da separação consensual, nada há que justifique manter-se na órbita do Judiciário o restabelecimento da sociedade conjugal. E para tanto não importa que a separação tenha sido feita em juízo, até mesmo litigiosamente. Em qualquer hipótese, o restabelecimento formal da vida em comum poderá ocorrer por escritura pública. A normativa administrativa em nosso Estado (art. 619-H da CNNR, na redação do Provimento 04/07) consagra esse entendimento.
 
Mesmo na ausência de previsão, por igual, tem-se como admissível que a reconciliação se dê mediante procuração, por instrumento público e com poderes especiais. Não há aí nenhum inconveniente, sendo certo que a união será refeita nos mesmos termos em que fora originalmente constituída, ressalvados, é claro, os direitos de terceiros (art. 1.577, parágrafo único, do CC).
 
Em uma única hipótese não será viável que esse procedimento se dê por escritura pública. É que, usando da faculdade que lhes é agora concedida pelo cânone civilista, o casal poderá requerer, cumulativamente a esse pleito, a modificação do regime matrimonial de bens. Nesse caso, dada a relevância das questões envolvidas, imperioso que o pedido seja deduzido na via judicial, como determina o § 2º do art. 1.639 do CC .
 
10. Não é demasia registrar que os pactos decorrentes da dissolução de uniões estáveis também possam ser realizados por escritura pública, dispensada homologação judicial. Isso, por sinal, já vinha sendo realizado antes mesmo da vigência da lei em exame. Com efeito, nenhuma razão há para que se exija maior formalidade para estabelecer os efeitos do desfazimento de uma relação que, por natureza, é informal.
 
Saliente-se que esse pacto, em si, não dissolve a união estável, pois esta, sendo um fato, se desconstitui da mesma forma como se constitui, ou seja: pelo evento fático da separação do casal. A escritura pública, assim como não é hábil para constituir a união estável, não o é para desconstituí-la, limitando-se seu objeto apenas a regrar as conseqüências do desfazimento operado no plano fenomênico.
 
11. Do mesmo modo, também cabe realizar separação de corpos na forma extrajudicial. Interesse para tanto poderá haver, pois o casal, desejando fazer cessar formalmente a convivência, e não contando com o lapso temporal necessário para obter a separação consensual (mais de um ano de casamento – art. 1.574 do CC), poderá, a qualquer tempo, regularizar a situação no plano jurídico por meio da separação de corpos, que, dispensando o dever de coabitação, (a) elimina qualquer possibilidade de posterior alegação de abandono do lar, (b) passa a contar tempo tanto para eventual separação judicial litigiosa (art. 1.572, parágrafo único, CC), divórcio direto (art. 1.580, § 2°) ou mesmo indireto (art. 1.580, “caput”, do CC), (c) faz cessar a comunicação dos bens adquiridos a partir daí e (d) rompe com a presunção pater est.
 
12. Para a prática do ato notarial pode ser livremente escolhido qualquer tabelionato de notas, conforme dispõe o art. 8° da Lei n° 8.935/94, não se submetendo às regras de competência do Código de Processo Civil (art. 100, I, do CPC). Por sinal, assim é também no caso de procedimento judicial de separação ou divórcio consensuais, pois, em se tratando de regra de competência relativa, facultado dela abrir mão por acordo.
 
13. Expressa é a lei (redação do § 3º do art. 1.124-A) quanto ao fato de que, para a obtenção da gratuidade, basta a declaração de pobreza, dispensando-se qualquer prova, mesmo se o casal estiver representado por advogado constituído. Nesse ponto, é certo, poderá haver abusos. Em tais casos, ao titular do cartório que se sentir lesado – embora não possa se recusar à prática do ato – sempre restará a possibilidade de ingressar em juízo com eventual pleito de cobrança, cabendo-lhe então provar que a declaração de pobreza não corresponde à realidade.
 
14. As cláusulas do acordo devem necessariamente referir o que ficar deliberado acerca da partilha, dos alimentos (mesmo que para dispensá-los) e do uso do nome (caso ao ensejo do casamento tenha havido a adoção do sobrenome do outro).
 
E se o casal pretender a separação ou o divórcio sem obter acordo quanto à partilha ou mesmo aos alimentos? Será possível lavrar escritura apenas para dissolver a sociedade conjugal ou extinguir o vínculo matrimonial, ressalvando que as questões acerca das quais não há consenso ficam relegadas para serem solvidas judicialmente, em oportuna ação de partilha e/ou de alimentos ?
 
A Lei 11.441/07 silencia acerca dessa questão. O Provimento 04/07-CGJ, por sua vez, na redação que dá ao art. 619-C da CNNR, permite dupla interpretação. Isso porque, ao dispor que na escritura constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia, à primeira vista parece impor o regramento dessas matérias. Assim não entendemos, porém. Ocorre que, como é cediço, dispor sobre alimentos não significa fixá-los. Poderá haver dispensa, renúncia (apesar do controvertido artigo 1.707 do CC) ou mesmo ressalva de que o tema será dirimido litigiosamente em juízo. O mesmo se diga quanto à partilha de bens, a qual, frise-se, não é indispensável no divórcio (art. 1.581 do CC) nem, muito menos, na separação (apesar da má redação do art. 1.575 do CC). Obrigatória é a menção ao que restar deliberado nessa matéria, o que pode simplesmente consistir em relegá-la para posterior solução (consensual ou litigiosa, judicial ou não). No entanto, dispensada a partilha, imprescindível é, ao menos, a descrição dos bens do casal (art. 1.121, inc. I, do CPC, e respectivo § 1°). Isso porque, caso não haja consenso sequer acerca dos bens partilháveis, retira-se a possibilidade da via amigável para o distrato conjugal.  Se assim é quando se trata de pedido em juízo, não há razão para que seja diferente em se tratando de solução extrajudicial.
 
15. Embora não seja possível realizar pela via extrajudicial as separações ou divórcios quando o casal possuir filhos menores ou incapazes, é certo que poderá, no momento desse acordo, haver estipulação de alimentos em prol de filhos maiores, pois, como é bem sabido, a maioridade, por si, não faz cessar a obrigação alimentar dos genitores, cujo fundamento simplesmente se desloca do dever de sustento (art. 1.566, inc. IV, do CC) para a obrigação genérica entre parentes (art. 1.694 do CC). Além disso, devido às notórias dificuldades do mercado de trabalho e à crescente qualificação profissional exigida para quem nele pretende ingressar, cada vez se torna mais tardia a independência financeira dos filhos.
 
Nessa hipótese, tem-se situação similar à estipulação em favor de terceiro (arts. 436/438 do CC), civilmente capaz, sendo recomendável contar com a anuência deste, que deve constar como interveniente na escritura pública. Caso isso não ocorra, o ajuste não poderá ser oposto ao beneficiário, a quem restará sempre aberta a possibilidade de formular demanda alimentar em juízo, desconsiderando por completo o que restou ajustado no acordo entre seus pais, do qual não participou. De observar que essa demanda será mediante uma ação de alimentos, e não revisional, pois para esta última é indispensável comprovar a modificação no equilíbrio do binômio alimentar, o que é inteiramente dispensável na primeira, que se satisfaz com a prova da possibilidade e da necessidade.
 
16. Questão externa à lei em exame é a que diz com a possibilidade ou não de executar coercitivamente os alimentos fixados mediante escritura pública. Isso porque o art. 733 do CPC, ao regrar essa modalidade executória, a restringe à execução de títulos judiciais. E nesse sentido têm se manifestado, de forma quase unânime, doutrina e jurisprudência.
 
Embora a Lei 11.441/07 não tenha feito qualquer menção ao tema, pensamos que, diante da nova realidade, é necessário repensar a matéria, em uma perspectiva sistemática. Quando da entrada em vigor do Código de Processo Civil não se cogitava de o Estado-Juiz deixar de intervir no momento da dissolução da sociedade conjugal ou do vínculo matrimonial, ocasião na qual muitas vezes são feitas estipulações alimentares. Ora, se ficar mantida a restrição da execução coercitiva exclusivamente aos alimentos fixados em juízo, em muito restará desestimulada a pactuação extrajudicial que agora se busca incentivar, o que configura uma contradição insuperável, que não deve sobreviver no âmago de um mesmo ordenamento jurídico. Por isso entendemos que doravante deve ser admitida a execução coercitiva aparelhada também em pacto formalizado por instrumento público.
 
17. Algumas dificuldades podem se apresentar quando se cogita de dar efetividade ao acordo, no que diz respeito à partilha e alimentos.
 
Quando houver previsão de pagamento da verba alimentar mediante desconto em folha de pagamento ou outros rendimentos do devedor, deverá constar na escritura a obrigação por este assumida de providenciar na devida autorização para desconto junto à fonte pagadora (que deverá ser indicada), em determinado prazo. Se isso não ocorrer, restará ao credor ingressar em juízo com pedido de execução, na forma do art. 735 do CPC, combinado com os artigos 16 e 17 da Lei 5.478/68.
 
Do mesmo modo, em se tratando de partilha de veículos ou valores monetários disponíveis em estabelecimentos bancários, se não houver a necessária iniciativa daquele em cujo nome se encontra esse patrimônio, restará à parte lesada postular em juízo o cumprimento da obrigação assumida.
 
No caso de imóveis, nenhum problema haverá, aplicando-se analogicamente o art. 616 da CNNR, que, ao tratar da partilha “causa mortis”,dispõe:
A escritura pública de partilha constituirá título hábil para o registro imobiliário, desde que todas as partes interessadas estejam assistidas por advogado comum ou advogado de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
 
18. Estas são algumas considerações preliminares acerca da nova lei, que, sem dúvida, apesar de alguns possíveis inconvenientes, representa um importante passo para modernizar e simplificar procedimentos de tanta relevância para o cotidiano de nossa população. A aplicação da lei – o “fazer-se norma”, na feliz expressão de Luiz Edson Fachin – é que permitirá o aprofundamento das reflexões e a indicação de soluções para os problemas que forem surgindo.

– Luiz Felipe Brasil Santos é desembargador do TJRS, professor da Escola da Magistratura da Ajuris e presidente do Ibdfam-RS.

 

Fonte: Espaço Vital