Artigo – Dinâmico, sistema registral permite mutabilidade do nome – Por Vitor Frederico Kumpel

1) Introdução


A importância do nome para a identificação e individualização das pessoas é, mais que uma afirmação jurídica, uma constatação histórica. O nome, de fato, é o principal meio de chamamento no trato social diário, bem como o mais importante elemento de identificação da pessoa natural para fins de imputação.

 

Embora o interesse individual no nome seja irrefutável, existem outros interesses igualmente legítimos subjacentes à questão, já que o nome, essencial para a distinção dos diversos sujeitos de direito, permite a imputação de direitos e obrigações no desenlace das múltiplas interações sociais (LOUREIRO, 2017, p. 166). A inidentificabilidade do sujeito traz sérios transtornos à operabilidade do sistema, daí afirmar-se que o nome (e sua publicidade) envolve uma questão de ordem pública.

 

Entretanto, há uma série de situações que impõem a mudança nomástica, seja para alinhar o nome a uma nova realidade jurídica, seja na tutela de direitos da personalidade. Justamente por existir essa variedade de interesses envolvidos, que ora convergem ora se contrapõem, a questão da mutabilidade do nome deve ser tratada com parcimônia, buscando um equilíbrio entre os bens jurídicos cuja tutela, no caso concreto, possa conflitar.

 

Foi nesse espírito de ponderação que a Lei 9.708/1998 modificou o art. 58 da Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/73), que até então, priorizando o interesse social na possibilidade de identificação e individualização das pessoas, determinava peremptoriamente a imutabilidade do nome. Pela nova redação, contudo, tal preceito cedeu espaço à noção – menos radical – de definitividade (KÜMPEL; FERRARI, 2017, pp. 258-259).

 

Assim, embora não seja propriamente imutável, não se nega o caráter definitivo do nome, o que motiva certos entraves à liberdade de sua modificação, como a exigência de fundamentação e de decisão judicial. Tratar-se-á, a seguir, das principais hipóteses de modificação do nome contempladas no sistema civil atual, bem como seus requisitos e reflexos na disciplina registral.

 

2) Alteração intermediária imotivada


O art. 56 da LRP prevê uma hipótese de alteração imotivada (independente de fundamentação ou justificativa), de natureza administrativa, estabelecendo que o “interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa”.

 

Tal dispositivo, entretanto, deve ser lido em conjunto com o art. 58 da mesma lei, segundo o qual não poderá o interessado suprimir prenome simples ou composto na medida em que o prenome é definitivo, podendo ser substituído por apelidos públicos notórios, ou outras modificações legalmente autorizadas.

 

Sendo assim, a liberdade de alteração imotivada consagrada no art. 56 é balizada, de um lado, pela definitividade do prenome, e de outro, pela tutela aos apelidos de família, daí restarem apenas as chamadas “adições intermediárias”, ou seja, acréscimos (de outros patronímicos ou de apelidos públicos notórios, p.e.) ou supressões (de admones e partículas p.e.) que não prejudiquem nem o prenome, nem o sobrenome (GONÇALVES, 2010, p. 159).

 

3) Erro de grafia


O erro de grafia era expressamente previsto como exceção à imutabilidade do prenome na redação original da LRP, cujo art. 59, par. único, determinava: “Quando, entretanto, for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do Juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do artigo 56, se o oficial não o houver impugnado.”

 

Apesar de suprimido pela Lei 9.708/1998, a hipótese encerrada no referido dispositivo (erros evidentes, perceptíveis “à primeira vista”) perdurou na norma genérica do art. 110, disciplinando a retificação de “erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção” e delineando o procedimento para a averbação correspondente.

 

Com fulcro no art. 110, o erro pode tanto residir no prenome quanto no sobrenome, ou até mesmo nos elementos facultativos. A correção pode ser solicitada na própria serventia, mediante requerimento do interessado, acerca do qual deverá manifestar-se o MP. Se, porventura, este entender que a modificação exige maiores indagações, impõe-se a intervenção do juiz, cuja determinação ensejará averbação da retificação à margem do respectivo assento.

 

4) Uso

 

A Lei 9.708/1998, além de mitigar o princípio da imutabilidade do nome, consagrou a tutela do pseudônimo, permitindo que o apelido público notório agregasse ao prenome e até mesmo o substituísse. Não há, porém, consenso quanto aos requisitos que devem ser observados para tal.

 

Uma corrente mais restritiva sustenta que caberia ao juiz avaliar, no caso concreto, a efetiva notoriedade do apelido, com base em determinados critérios (p.e. VENOSA, 2008, p. 189), enquanto outra, mais liberal, entende que o simples auto chamamento da pessoa configura “apelido público notório”, prescindindo de prova testemunhal que ateste ser aquela pessoa conhecida no núcleo da sociedade por outra denominação.

 

5) Exposição ao ridículo


O art. 55, par. único, da LRP, mais que uma hipótese de modificação nomástica, prevê um dever negativo aos oficiais de registro civil, que deverão recusar o registro de “prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”. Caso, porém, se verifique a posteriori o caráter vexatório do prenome já registrado, poderá o titular requerer a modificação, a qualquer tempo.

 

Afinal, não seria razoável que um ato (muitas vezes irrefletido) por parte do pai ou da mãe – ou até de um outro declarante que pode sequer guardar vínculos de parentesco ou de afeto com a criança – deva prevalecer em detrimento da própria personalidade do indivíduo nomeado.

 

Muito embora a doutrina e a jurisprudência continuem refratárias quanto ao tema, entende-se que a questão do ridículo não se encerra no aspecto objetivo externo, sendo também uma questão de foro íntimo. Não é razoável exigir que, para autorizar a modificação, haja bullying ostensivo; basta que o titular de direitos se sinta constrangido com seu próprio nome. Até porque, como dito, o nome, sob a perspectiva individual, é um direito da personalidade, cuja tutela deve levar em consideração também aspectos subjetivos da pessoa.

 

6) Proteção à testemunha


A Lei 9.807/1999, instituindo o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçada, determina, em seu art. 9º, que “em casos excepcionais, e considerando as características e gravidade da coação ou ameaça, poderá o conselho deliberativo encaminhar requerimento da pessoa protegida ao juiz competente para registros públicos objetivando a alteração de nome completo”.

 

A referida lei modificou o par. único do art. 58 da LRP, determinando que “a substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público”.

 

Ainda, visando aliar a efetividade do programa à segurança jurídica dos livros públicos, incluiu o § 7º ao art. 57 da LRP, dispondo que: “Quando a alteração de nome for concedida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime, o juiz competente determinará que haja a averbação no registro de origem de menção da existência de sentença concessiva da alteração, sem a averbação do nome alterado, que somente poderá ser procedida mediante determinação posterior, que levará em consideração a cessação da coação ou ameaça que deu causa à alteração”.

 

O referido conselho, admitindo o ingresso da vítima ou testemunha no programa, e considerando as peculiaridades do caso, poderá peticiona ao juiz corregedor ou da Vara de Registros, e este, após ouvir o MP, expedirá mandado de averbação para alteração integral do nome do protegido, sob sigilo indispensável. A alteração, para garantir a completa dissociação entre a nova identidade e a antiga, deve ser obrigatoriamente integral, sendo que o novo nome deve ser completamente diverso do nome originário.

 

7) Alterações no estado familiar


O sobrenome ou patronímico tem por principal função associar o indivíduo a um determinado grupo familiar, identificando laços de parentesco dentro de uma sociedade. Tais laços, porém, não são necessariamente estáticos, havendo uma série de acontecimentos ao longo da vida da pessoa natural que podem repercutir no seu estado familiar, como o casamento, a união estável, a separação e o divórcio, o reconhecimento de parentalidade, a adoção etc.

 

Ora, se o sobrenome reflete o estado familiar, tais mudanças podem implicar uma correspondente alteração no sobrenome – seja pela aquisição de apelidos de família, seja pela sua exclusão. No caso do casamento, por exemplo, faculta-se aos cônjuges a inclusão do sobrenome um do outro, tornando notória a união (KÜMPEL; FERRARI, 2017, pp. 267-269).

 

Recorde-se, porém, que sob a égide do CC/1916 a adoção do patronímico do marido era obrigatória à mulher, operando-se ipso iure por ocasião do matrimônio. Com a redação dada pela Lei 6.515/1977, contudo, a aquisição deixou de ser automática, tornando-se facultativa e consensual. O CC/2002, por seu turno, ampliou tal faculdade também ao marido, prevendo no art. 1.565, § 1º, que “qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro”.

 

Note-se que, pela dicção normativa, não seria possível a substituição do sobrenome familiar anterior pelo sobrenome do outro nubente, já que o texto legal fala apenas em “acrescer”. Porém, na prática, e por força das normas de serviço estaduais (como as de São Paulo e de Minas Gerais, p.e.), tanto tem sido admitido a supressão parcial de sobrenome com a adoção do sobrenome do cônjuge, quanto a supressão integral de sobrenome, com a adoção do sobrenome do cônjuge.

 

Se a aquisição do sobrenome pelo casamento visa indicar a existência do vínculo matrimonial, o que ocorre com o sobrenome adquirido havendo a dissolução desse vínculo? Antes da entrada em vigor do CC/02, vigorava o princípio da transitoriedade, ou seja, a dissolução exigia, por regra, a supressão do nome. Com a entrada em vigor do atual diploma, porém, a manutenção tornou-se a regra, e a supressão restou excepcional, condicionada à renúncia expressa.

 

A nova orientação coaduna com o a natureza de direito da personalidade reconhecida ao nome, que se incorporaria, de forma inata e permanente, à essência do titular, independentemente da origem ou a forma de aquisição (KÜMPEL; FERRARI, 2017, pp. 273-277).

 

Note-se que a aquisição do sobrenome do cônjuge pode implicar a modificação de assentos reflexos, como no caso do art. 3º, par. único, da Lei 8.560/1992, que ressalva “o direito de averbar alteração do patronímico materno em decorrência do casamento, no termo de nascimento do filho”. Por exemplo, caso a mãe se case, poderá não só modificar seu assento de nascimento, averbando o nome do marido, mas também averbar a retificação no assento dos filhos (DIAS, 2015, p. 124).

 

É também possível a retificação do sobrenome do filho nos casos em que a mãe, tendo substituído o próprio sobrenome pelo do marido, volta a usar o nome de solteira após o divórcio, desde que não se prejudique os apelidos de família paternos (BRUM, 2001, p. 45).

 

8) Adoção


O art. 47, §5º, da Lei 8.069/90 determina que “a sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome”. A alteração do sobrenome decorre da própria finalidade da adoção, isto é, a alocação do adotado em família substituta, implicando seu desligando jurídico em relação à família originária.

 

Assim, o adotado passa a estar vinculado não só aos adotantes – pelo vínculo de paternidade e/ou maternidade – mas também às famílias destes, passando a pertencer a um novo tronco familiar, o que demanda a substituição do antigo sobrenome, haja vista ser o patronímico o principal indicativo de parentesco perante a sociedade.

 

9) Conclusão


Há diversas outras questões polêmicas em matéria de mudança do nome, como a alteração do prenome decorrente de mudança de sexo, a supressão de sobrenome paterno ou materno em face de abandono socioafetivo, a aquisição do sobrenome pela união estável (cf. KÜMPEL; FERRARI, 2017, pp. 281-287 e 269-273), dentre outras questões importantíssimas que merecem tratamento mais esmiuçado. Buscou-se apenas breve exposição das principais situações ensejadoras da alteração, previstas pelo ordenamento jurídico, de modo a demonstrar a dificuldade inerente à questão, que tangencia diversos polos de interesse igualmente merecedores de tutela.

 

Sendo o direito ao nome um direito de personalidade, não soa razoável exigir sempre um justo motivo para a modificação. Se o titular não tem apreço pelo seu nome ou tem interesse em apor outro sobrenome, sem prejudicar a terceiros sob o prisma comutativo ou distributivo, a mudança deveria ser admissível, ainda que calcada apenas no foro íntimo, por um imperativo de autodeterminação pessoal (SCHREIBER, 2014, p. 193).

 

A tutela de terceiros não deve implicar, necessariamente, restrições à mutabilidade, mas sim o reforço à publicidade (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 114). Por esse viés, os registros públicos, orientados pela busca da segurança jurídica, assumem inestimável importância, pois permitem suprir, por meio da publicidade, a segurança que poderia ser prejudicada pela possibilidade irrestrita de mutação do nome.

 

Afinal, a segurança jurídica garantida pelo sistema registral não é simplesmente estática, e sim dinâmica, já que alicerçada na constante atualização e correção das informações assentadas, permitindo aferir não apenas a situação jurídica originária do assento registral mas todas as modificações supervenientes (averbações e anotações), e garantindo, assim, a correspondência entre a realidade registral e a realidade jurídica ao longo do tempo.

 

Bibliografia


Loureiro, Luiz Guilherme. Registros Públicos – teoria e prática, 8ª ed., Salvador, Juspodvm, 2017


Kümpel, Vitor Frederico; Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral, v. 2, São Paulo, YK, 2017


Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 1 , 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010


Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil, v. 1, 8ª ed., São Paulo, Atlas, 2008


Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 10ª ed., São Paulo, RT, 2015


Brum, Jander Maurício. Troca, Modificação e Retificação de Nome das Pessoas Naturais, Rio de Janeiro, Aide, 2001


Schreiber, Anderson. Direitos da personalidade, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 2014


Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, v. 7, São Paulo, RT, 2012

 

 

Vitor Frederico Kumpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

 

 

Fonte: Conjur