Artigo – Sem lei complementar, não há ITD em doação e herança provenientes do exterior – Por Gustavo Brigagão

Foi em junho 1809 que, pela primeira vez, previu-se tributo cujo fato gerador era a transmissão de bens de raiz (bens imóveis). Essa instituição foi feita por meio do Alvará 3 (norma editada pelo príncipe regente), que deu ao referido tributo a denominação de imposto da sisa (utilizada até os dias atuais). Uma curiosidade sobre essa exação é a de que ela também onerava a transmissão da propriedade de escravos.

 

Em 1891, essa incidência foi trazida ao nível constitucional, tendo sido atribuída aos Estados competência para tributar a transmissão de propriedade.

 

Já na vigência da Constituição de 1934, houve a criação de dois impostos distintos, ambos de competência dos estados: o imposto de transmissão de propriedade causa mortis de quaisquer bens (artigo 8º, I, b) e o imposto sobre a transmissão de propriedade imobiliária inter vivos (artigo 8º, I, c).

 

A mesma atribuição de competência foi mantida pelas Constituições de 1937 (artigo 23, I, b e c) e de 1946 (artigo 19, II e III), pelo menos até o advento da Emenda Constitucional nº 5, de 1961, pela qual os municípios passaram a ser os competentes para fazer incidir o imposto de transmissão de bens imóveis inter vivos (artigo 29, III). Os Estados mantiveram a competência para a cobrança do imposto causa mortis (artigo 19, I, e § 1° e 2°). As doações, portanto, eram tributadas exclusivamente pelos municípios.

 

A Emenda Constitucional 18, de 1965, restabeleceu a união dos impostos de transmissão de bens imóveis, inter vivos e causa mortis, e os manteve na competência dos Estados (artigo 9º, caput, e §§ 1° a 4°).

 

Essa configuração se manteve nas Constituições de 1967 (artigo 24, I, e §2°) e na Emenda Constitucional 1, de 1969 (artigo 23, I e §§ 2° e 3°).

 

Após essas idas e vindas na outorga de competências para a tributação da transmissão de bens, na vigência da Constituição de 1988, coube aos estados e ao Distrito Federal a competência para a instituição do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações (ITD — artigo 155, I), e aos Municípios, para a instituição do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos (ITBI — artigo 156, II).

 

Portanto, enquanto na Constituição anterior, a citada competência era somente dos estados e a amplitude da incidência era menor, na medida em que não alcançava bens móveis, na Constituição atual, a abrangência da incidência aumentou (a transmissão onerosa ou gratuita, inter vivos ou causa mortis, e a doação e a herança de quaisquer bens passaram a ser tributadas) e a competência foi dividida entre estados e municípios: os primeiros passaram a ter competência para tributar as transmissões causa mortis e as doações de quaisquer bens ou direitos; e os segundos, as transmissões onerosas de bens imóveis.

 

Transcrevo, abaixo, o dispositivo constitucional que atribui aos Estados competência para cobrança do ITD, que é objeto do presente estudo:

 

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

 

I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

 

§ 1.º O imposto previsto no inciso I:

 

I – relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal

 

II – relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;

 

III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:

 

a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior;

 

b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)

 

Vê-se, portanto, que o texto constitucional, já na sua origem, dirime possíveis conflitos de competência entre estados relativos a transmissões patrimoniais que ocorram no território nacional, e atribui à lei complementar a regulação da competência para a instituição do ITD nas hipóteses em que haja algum elemento de conexão de que possa decorrer tributação em país estrangeiro (tais como, as hipóteses em que o transmitente tenha domicílio ou residência no exterior, os bens inventariados sejam localizados no exterior, ou, ainda, o próprio inventário seja realizado fora do Brasil).

 

Como, até o presente momento, essa lei complementar não foi editada, surge a discussão relativa à possibilidade de os Estados tributarem aquelas situações especificamente ressalvadas na Constituição Federal. Isso porque as legislações locais, na maior parte dos casos, expressamente preveem a incidência do ITD nesses casos[1].

 

A jurisprudência sobre o tema está dividida. No estado de São Paulo, por exemplo, há jurisprudência em sentidos opostos no que diz respeito à possibilidade da incidência do ITD nessas hipóteses.

 

De fato, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos de Arguição de Inconstitucionalidade 0004604-24.2011.8.26.0000, decorrente de Mandado de Segurança preventivo impetrado para obstar a incidência do ITCMD sobre a doação de quotas de empresa situada no exterior, proferiu, em 30 de março de 2011, acórdão assim ementado:

 

“I – …

 

II – O Legislador Constituinte atribuiu ao Congresso Nacional um maior debate político sobre os critérios de fixação de normas gerais de competência tributaria para instituição do imposto sobre transmissão de bens – móveis/imóveis, corpóreos/incorpóreos – localizados no exterior, justamente com o intuito de evitar conflitos de competência, geradores de bitributação, entre os Estados da Federação, mantendo uniforme o sistema de tributos.

 

III – Inconstitucionalidade da alínea ‘b’ do inciso II do artigo 4º da Lei paulista nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, reconhecida. Incidente de inconstitucionalidade procedente.”[2]
Há, contudo, acórdão em sentido contrário proferido pelo próprio TJSP. Transcrevo abaixo breve trecho do voto do Desembargador João Carlos Garcia:

 

“(…) na ausência de lei complementar nacional (CR, artigo 146, III, a), os Estados assumem competência plena para a edição de leis tributárias concernentes a tributos que daquele ordenamento careciam, na forma, aliás, da prescrição textual da própria Carta Magna (CR, artigo 24 §3º).

 

(…)

 

Completando o sentido, ADCT, artigo 34, §3º, pelo qual, com a ‘promulgação da Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto’.

 

Acresça-se, ainda, que a impetrante não fez prova alguma de que as liberalidades que o falecido a ela outorgou foram, de qualquer forma, tributadas na Itália, a justificar, na linha de sua argumentação, a necessidade de lei complementar nacional para evitar a bitributação” (Apelação/Reexame Necessário 0011110-17.2012.8.26.0053, da Comarca de São Paulo, Relator

 

Desembargador João Carlos Garcia, julgado em 25 de setembro de 2013)[3]

 

O § 3° do artigo 24 da CF e o § 3º do artigo 34 do ADCT, mencionados nos acórdãos acima como fundamentadores da possibilidade da incidência do ITD mesmo que não haja a lei complementar a que se refere a Constituição, determinam, respectivamente, que "inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades" e que “promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nela previsto”.

 

Na interpretação desses dispositivos e, consequentemente, na solução da questão em exame, há que se dar a real dimensão das atribuições conferidas à lei complementar no Direito Tributário brasileiro, que são as de fazer com que o nosso sistema tributário seja único e uniforme, bem como evitar que cada entidade federativa estabeleça normas gerais distintas, e que, consequentemente, coexistam milhares de sistemas tributários incompatíveis entre si.

 

Nesse importantíssimo papel, consistente em dispor sobre normas gerais que dirimam conflitos de competência entre as diversas unidades da federação (mais de 5 mil), a lei complementar passa a ter a natureza de lei nacional, e não federal, como bem demonstra Ives Gandra no texto abaixo transcrito[4]:

 

“Desde a Constituição de 1967 e do CTN, recepcionado com eficácia de lei complementar, que os autores desse Código têm a lei complementar como lei nacional e não apenas federal, conforme sucessivas manifestações em Congressos e Simpósios. Destaco o texto de Gilberto de Ulhôa Canto, que presidiu a Comissão elaboradora da revisão do anteprojeto de Rubens Gomes de Sousa para diploma de tal envergadura – que em 37 anos de vigência jamais teve um artigo considerado inconstitucional – o seguinte trecho:

 

"Quando prevista pela Emenda Constitucional n° 18, de 01/12/1965, a figura da lei complementar encontrou injusta oposição por parte de alguns juristas, que não compreendendo o seu alcance e sua importância, consideraram-na afrontosa à autonomia dos Estados e Municípios, e um indevido instrumento de autoritarismo da União em todo o campo impositivo.

 

As objeções improcediam. Dizer-se que a lei complementar afetava a autonomia dos Estados e Municípios, e por isso serem elas inconstitucionais, não é correto, pois a sua criação e o âmbito de sua competência estão expressos na mesma Constituição que assegura a autonomia, que assim é restringida na sua própria origem. Por outro lado, as suas normas inibem também a autonomia legislativa da própria União, na medida em que nem leis federais sobre tributos do poder central escapam à necessidade de se submeterem ao que as leis complementares prescrevem, dentro dos limites que lhes são próprios. Acresce que a lei complementar é elaborada pelo Congresso Nacional, em cujos quadros a União não tem condição alguma de influir; pois os Senadores representam os Estados e os Deputados os colégios eleitorais dos Estados e dos Municípios." (grifos meus)”

 

Assim, há que se interpretar os dois dispositivos constitucionais acima citados (§ 3° do artigo 24 da CF e o § 3º do artigo 34 do ADCT) como regras de aplicação restrita às hipóteses de ausência de lei federal (ordinária), e não àquelas para as quais haja a necessidade da edição de lei complementar (nacional) que as regule, como no caso em exame.

 

A situação é idêntica à de precedentes do STF que já tive a oportunidade de mencionar em outras ocasiões nesta coluna: (a) os relativos às 27 Ações Diretas de Inconstitucionalidade que foram propostas contra leis estaduais que instituíram o Adicional do Imposto sobre a Renda sem que houvesse a prévia e necessária lei complementar que dispusesse sobre como seriam dirimidos os possíveis conflitos de competência[5]; e (b) os relativos às ADINs que examinaram a incidência do ICMS nos serviços prestados por empresas de navegação aérea, sem que lei complementar regulamentasse (ou regulamentasse de forma eficiente) os mesmos possíveis conflitos[6].

 

Nesses precedentes, o STF entendeu que a ausência de lei complementar (necessária a que se evitasse os referidos conflitos de competência) impediria a incidência do tributo, daí decorrendo a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que a previam.

 

Mesma sorte devem ter os dispositivos das leis estaduais que preveem a incidência do ITD naquelas hipóteses para as quais haja expressa determinação constitucional de que prévia lei complementar deva regular a respectiva instituição.

 

De fato, essa regulamentação ainda não foi feita, e os artigo 35 a 42 do CTN (que dispunham sobre normas gerais relativas à incidência do antigo ITBI estadual) não se prestam a esse fim, pois não podem ser considerados recepcionados pela atual Constituição, por tratarem de tributo de configurações distintas do atual ITD.

 

Logo, será inconstitucional a incidência desse imposto estadual (ITD) enquanto não houver lei complementar que expressamente regule a competência para a sua instituição nas hipóteses em que o transmitente tenha domicílio ou residência no exterior, os bens inventariados sejam localizados no exterior, ou, ainda, o próprio inventário seja realizado fora do Brasil. Isso é o que expressamente determina a Constituição Federal.

 

[1] RJ – Lei nº 1.427, de 13.02.1989

 

“Art. 8º – O imposto é devido ao Estado do Rio de Janeiro se nele estiver situado o imóvel transmitido, seja por sucessão causa mortis ou por doação, ainda que a mutação patrimonial tenha lugar ou resulte de sucessão aberta em outro Estado ou no exterior.”

 

(…)

 

Art. 9º – No caso de transmissão de títulos, créditos, ações, quotas, valores e outros bens móveis de qualquer natureza, bem como dos direitos a eles relativos, o imposto é devido ao Estado do Rio de Janeiro se nele tiver domicílio:

 

I – o doador, ou se nele ocorrer a abertura da sucessão, nos termos da legislação civil;

 

II – o donatário, na hipótese em que o doador tenha domicílio ou residência no exterior;

 

III – o herdeiro ou legatário, se a sucessão tiver sido processada no exterior;

 

IV – o herdeiro ou legatário, se o de cujus possuía bens, era domiciliado ou residente no exterior, ainda que a sucessão tenha sido processada no País. SP – Lei nº 10.705, de 28.12.2000

 

“Artigo 4º – O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o "de cujus" possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país:

 

I – sendo corpóreo o bem transmitido:

 

a) quando se encontrar no território do Estado;

 

b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado;

 

II – sendo incorpóreo o bem transmitido:

 

a) quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado;

 

b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado.

 

[2] Esse entendimento vem sendo reiteradamente manifestado pelo TJSP, conforme se extrai dos seguintes Acórdãos:

 

“MANDADO DE SEGURANÇA ITCMD SOBRE HERANÇA DE FALECIDO QUE POSSUÍA BENS, ERA RESIDENTE OU DOMICILIADO OU TEVE SEU INVENTÁRIO PROCESSADO NO EXTERIOR Ausência de Lei Complementar disciplinando a competência para a sua instituição (art. 155, § 1º, III, “B”, CF) – Omissão legislativa que não pode ser suprida pelos Estados – Inconstitucionalidade do art. 4º, II, “b”, da Lei Estadual nº 10.705/2000 reconhecida pelo Colendo Órgão Especial – Indevida a incidência do imposto. Recursos improvidos.” (Acórdão nº 2013.0000562916, de 16.09.2013, Relator Desembargador Moacir Peres.)

 

“ITCMD Incidência no caso de o de cujus possuir bens, ser residente ou domiciliado ou ter o seu inventário processado no exterior. Alegação de que é válida a Lei Estadual nº 10.705/00 que instituiu o imposto. Descabimento. Hipótese em que a Constituição Federal condicionou a instituição do imposto, nesse caso particular, a lei complementar que ainda não foi criada. Art. 155, § 1º, III, b, da Constituição Federal. Inconstitucionalidade do art. 4º, inciso II, alínea b, da Lei Estadual nº 10.705/00 declarada por este tribunal na Arguição de Inconstitucionalidade nº 0004604-24.2011.8.26.0000. Recurso não provido.” (Acórdão nº 2013.0000451749, de 07.08.2013, Relator Desembargador Jarbas Gomes.)

 

“Reexame necessário e apelação. Mandado de Segurança. ITCMD. Herança em dinheiro, de pessoa residente no exterior. Sentença concessiva da ordem. Manutenção. Aplicação do artigo 155, parágrafo 1º, inciso III, alínea ‘b’, da Constituição Federal. Exigência de Lei Complementar, ainda não editada. Cobrança com base em Lei Estadual. Recursos Desprovidos.” (Acórdão 2013.0000132832, de 12.03.2013, Relator Desembargador Amorim Cantuária.)

 

“AGRAVO DE INSTRUMENTO Ação anulatória de débito fiscal Bem imóvel localizado no exterior recebido por herança Incidência de Imposto sobre transmissão 'causa mortis' e doação de bens (ITCMD) Impossibilidade Exação que depende da edição de lei complementar, conforme decidido pelo Órgão Especial em incidente de inconstitucionalidade Decisão agravada reformada para conceder antecipação da tutela, haja vista a presença dos requisitos legais. Agravo provido.” (Acórdão nº 2013.0000106499, de 04.03.2013, Relator Desembargador Paulo Galizia.)

 

[3] No mesmo sentido, há decisão monocrática proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (“STF”), que considerou constitucional a exigência do ITD pelo Estado do Rio de Janeiro, sob o argumento de que, inexistindo lei federal que traga a respectiva norma geral, a instituição de tal tributo estaria garantida pelo exercício de competência plena dos Estados, prevista no art. 24, § 3º, da CF/88, em conjunto com o art. 34, § 3º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (“ADTC”). Há, também, precedentes do STF no sentido de que os dispositivos acima referidos fundamentariam a constitucionalidade de leis ordinárias instituidoras do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e da Contribuição Social sobre o Lucro (CSL). Mas, diferentemente do que ocorre no caso do ITD incidente em doações e heranças provenientes do exterior, em nenhuma daquelas hipóteses, a CF exigiu de forma expressa e específica a necessidade de prévia lei complementar que regulasse a forma como se daria o exercício da respectiva competência. Naqueles casos, os contornos constitucionais daquelas competências estavam claramente definidos. Isso torna esses precedentes inaplicáveis ao caso em exame.

 

[4] “Necessidade de Lei Complementar para a Conformação do ITCMD – Inteligência do artigo 155, §1º, inciso III, da Constituição Federal”, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 99, Dezembro/2003, p. 154.

 

[5] ADIn n. 28-SP, Relator Ministro Octávio Gallotti, Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 151, p. 657, 19.09.1991.

 

[6] ADIn n. 1.600-8, Relator Ministro Nelson Jobim, 26.11.2001.

 

Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.

 

Fonte: Conjur