Código Civil que ‘já nasceu velho’ completa 20 anos à espera de atualização

Lei regula a maior parte das relações privadas, como casamento, contratos e herança

Os mais jovens talvez não saibam, os mais velhos talvez tenham se esquecido: até o começo de 2003, o marido poderia anular o casamento se descobrisse que sua mulher não era virgem, e em nenhum caso existia a opção de juntar ao seu nome o sobrenome dela.

Culpa do Código Civil. Ou melhor, da demora em aprovar, no Congresso Nacional, um novo Código Civil para substituir aquele que havia sido editado em 1916 e estava em vigor desde 1º de janeiro de 1917.

Que era preciso atualizar o código todos sabiam. Tanto que, de 1969 a 1975, Miguel Reale capitaneou uma comissão de juristas para elaborar um projeto de lei. Só em 2002, porém, os deputados e senadores terminaram de votar as novas regras, que passaram a valer em 11 de janeiro de 2003.

A lentidão do Congresso fez com o que o código, mesmo depois da Constituição de 1988, preservasse por mais de uma década tratamentos discriminatórios, como este: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. Só o homem?

Exemplos assim pipocavam nessa lei cuja importância dificilmente pode ser superestimada. Para Cristiano de Sousa Zanetti, professor de direito da USP e autor de livros sobre o tema, o Código Civil tem para a vida das pessoas papel semelhante ao da Constituição em relação ao direito público.

“Ele disciplina o que é básico desde o nascimento até a morte: o que é pessoa, quais os direitos que a gente tem por ser pessoa, os bens dessas pessoas, as relações de família, os negócios, os contratos, o que faz quando causa dano, a atividade empresarial, o que acontece depois que morre”, diz Zanetti.

De acordo com ele, o novo código é melhor do que o anterior, sem que tenha sido operada uma ruptura. “Há uma série de ajustes no regime anterior, mas diversos artigos são iguais ou muito semelhantes”, afirma.

Zanetti considera positiva essa continuidade, já que os códigos têm papel muito forte na vida das pessoas.

Algumas das mudanças legais que entraram em vigor em 2003 representavam pouca novidade. A anulação do matrimônio em caso de a mulher não ser virgem, por exemplo, já quase não acontecia, embora um caso de 1998 confirmado pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo estivesse lá para mostrar que a mentalidade do século 19 batia à porta do século 21.

Outras trouxeram ganhos significativos de eficiência. De acordo com Zanetti, foi o que se deu com a unificação dos regimes de obrigações civis e comerciais, que se espalhavam pelo Código Civil e pelo Código Comercial, de 1850.

Enquanto o novo código não era aprovado, havia muita discussão sobre qual das duas normas aplicar em inúmeras situações, incluindo compromissos de compra e venda.

As famílias também sentiram diferença, porque a lei finalmente reconheceu alguma igualdade entre os cônjuges e entre os filhos, pouco importando se fossem frutos do casamento, resultados de aventura extraconjugal ou adotados.

Mas é no próprio direito de família que estão algumas das críticas mais duras ao novo Código Civil, que, para a advogada Maria Berenice Dias, já nasceu velho.

“O código foi gestado antes da Constituição e antes da Lei do Divórcio, de 1977”, afirma Dias, que é desembargadora aposentada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família.

“Claro que o novo código trouxe aperfeiçoamentos, mas uma lei nova precisa retratar a sociedade do seu tempo. A lei tem que tirar a fotografia da sociedade e impor normas reguladoras. Ela vem um pouco depois da foto, mas não pode vir muito depois, ou não vir”, diz.

Dias cita como exemplos a ausência de regras sobre famílias monoparentais (caso de filhos criados por apenas um genitor) e famílias homoafetivas –em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável para casais gays, mas isso não está na lei.

Para Zanetti, professor da USP, seria bem-vinda uma revisão do código, para ajustar problemas detectados após a sanção e atualizar normas à luz dos novos tempos.

TROCA DE SOBRENOME

E foi de olho nos novos tempos que o assistente logístico Alexandre Pereira Santos Galzo, 39, decidiu adotar o sobrenome da dentista Rubia Fernanda Lima Galzo, 34, quando se casaram em 2015.

“Foi uma forma de quebrar aquele paradigma de que a mulher que deveria pegar o sobrenome do homem. Eu via isso como machismo, como uma forma de provar que a mulher é objeto do homem”, diz ele.

A família estranhou a decisão, e pode-se entender o motivo: até hoje essa opção é incomum.

Dados da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais) mostram que, em 2004, pouco mais de 9.000 homens adotaram o sobrenome da esposa e quase 300 mil mulheres pegaram o sobrenome do marido.

A proporção se manteve estável por uma década. A partir de 2015, a quantidade de mulheres com o nome do companheiro não mudou, mas o número de homens com o sobrenome da esposa caiu para 5.000.

O que tem crescido são os casais em que ninguém mexe no nome, talvez por praticidade. Em 2022, mais de 400 mil casamentos se deram dessa maneira, superando os 378 mil casos em que apenas a mulher mudou o sobrenome.

Na contramão dessa tendência estão Marçal Rocha Rogel Righi e Clarissa Schmidt Rogel Righi, os dois com 31 anos. Quando se casaram, em 2018, ambos mudaram o sobrenome. Ele adotou Rogel e ela, Righi.

“Para a gente, adotar o sobrenome do outro significa que um faz parte da família do outro. A mudança simboliza essa entrada”, diz Marçal.

VEJA ALGUMAS MUDANÇAS DO CÓDIGO CIVIL

Antes, dizia que “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. Agora diz que “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.

Antes, permitia anulação do casamento se a mulher fosse deflorada. Agora não se trata do assunto.

Antes, a família legítima era a formada pelo casamento formal. Agora a família abrange também a unidade formada pela união estável.

Antes, só a mulher podia adotar sobrenome do marido. Agora ambos podem trocar sobrenome.

Antes, a maioridade civil chegava aos 21 anos. Agora, é aos 18.

Antes, o chefe da família era o pai. Agora, o poder familiar cabe aos dois cônjuges.

Antes, a guarda dos filhos era da mulher, salvo exceções. Agora, é de quem tiver melhores condições de cuidar dos filhos.

Antes, havia distinção entre filho do casamento, o ilegítimo (fora do casamento) e o adotivo. Agora, todos têm os mesmos direitos e qualificações.

Antes, não havia nada sobre comportamento antissocial em condomínio, e a lei dizia que a multa por atraso era de até 20% do valor devido. Agora, comportamento antissocial pode ser multado em até dez vezes a taxa do condomínio, e a multa por atraso na taxa mensal é de no máximo 2%.

Autores: Uirá Machado e Isabella Menon

Fonte: Folha de S.Paulo