Investigação de paternidade – Exame de DNA – Registro de nascimento

Ementa: Apelação cível. Reivindicação da paternidade. Exame de DNA comprobatório. Paternidade biológica x paternidade socioafetiva. Princípio do melhor interesse do menor. Alteração do registro de nascimento. Possibilidade.

– O reconhecimento dos filhos através de registro público é irrevogável. No entanto, tal fato não implica a vedação de questionamentos em torno da filiação, desde que haja elementos suficientes para buscar a desconstituição do reconhecimento anteriormente formulado.

– A primazia da dignidade humana perante todos os institutos jurídicos é uma característica fundamental da atual Constituição Federal. Nesse sentido, e em face da valorização da pessoa humana em seus mais diversos ambientes, inclusive no núcleo familiar, surgiu o Princípio do Melhor Interesse do Menor.

– A Constituição Federal tornou equivalentes os laços de afeto e de sangue, acabando com a discussão sobre qual desses é a verdadeira filiação. Na hipótese de conflito entre a paternidade biológica e a paternidade afetiva, deve-se priorizar aquela em detrimento desta, desde que o filho mantenha também com o pai biológico laços de afeto.

Apelação Cível n° 1.0024.05.737489-4/002 – Comarca de Belo Horizonte – Apelantes: 1º) Ministério Público do Estado de Minas Gerais; 2º) F.J.V.; 3º) L.F.F.T. – Apelados: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, F.J.V., L.F.F.T., J.D.T.F. por si e repdo. seu filho L.F.V. – Relator: Des. Dárcio Lopardi Mendes

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar a preliminar, dar provimento à terceira apelação e negar provimento à primeira e segunda apelações.

Belo Horizonte, 9 de novembro de 2006. – Dárcio Lopardi Mendes – Relator.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

Assistiu ao julgamento, pelo segundo apelante, o Dr. F.J.V.

DES. DÁRCIO LOPARDI MENDES – Trata-se de apelações interpostas contra sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da 10ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte/MG, nos autos da ação de reconhecimento de paternidade proposta por L.F.F.T. em face de L.F.V. e F.J.V., que julgou parcialmente procedente a pretensão formulada na inicial, reconhecendo ser L.F.F.T. o pai biológico e F.J.V. o pai afetivo de L.F.V. , determinando que o menor tenha acrescentado a seu nome o patronímico paterno-biológico, passando a se chamar L.F.V.T., devendo ser incluídos em sua certidão de nascimento os nomes do pai e avós biológicos e excluídos os dos pais afetivos, averbando-se em sua certidão de nascimento o nome de F.J.V., com a denominação de pai afetivo. Ao final, condenou o autor e os demandados no pagamento pro rata das custas processuais e, quanto aos honorários advocatícios, determinou que, em função da procedência parcial do pedido, cada parte assumisse os seus.

Nas razões recursais de f. 168/183, o primeiro apelante pugna pela improcedência do pedido, para que seja reconhecida a paternidade socioafetiva de F.J.V., mantendo-o como pai registral do menor, pois que L.F.V. o reconhece desde o seu nascimento como seu pai, e a convivência de ambos por aproximadamente cinco anos permitiu o estabelecimento de fortes vínculos afetivos entre eles. Acrescenta que a criança nutre afeto filial pelo pai registral, o que denota a importância da noção de “posse do estado de filho”, expressão forte e real do parentesco psicológico a caracterizar a filiação afetiva, a qual deve prevalecer sobre a verdade biológica. Aduz ainda que, embora o menor esteja tendo uma convivência harmoniosa com o pai biológico, seu referencial paterno ainda é F. Afirma ainda que, reconhecida a paternidade biológica, a conseqüência lógica seria a anulação do registro civil, o que no caso é inviável, pois que a desconstituição do registro somente é autorizada se comprovada a existência de vício de consentimento.

Já o segundo apelante, nas razões de f. 187/209, alega preliminarmente a ilegitimidade ativa de L.F.F.T., pois que é direito personalíssimo do filho impugnar o reconhecimento da paternidade, e, enquanto persistir a menoridade, esse direito de ação não pode ser exercido por representação, assistência ou terceiros, e, também, direito único de o marido contestar a paternidade de seus filhos. No que tange ao mérito, salienta que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho, mas necessariamente da socioafetiva, pugnando pela reforma da decisão recorrida, para que seja reconhecida sua paternidade e mantido intacto o registro de nascimento do menor. Requer, ainda, a inversão dos efeitos da sucumbência, condenando os apelados no pagamento das custas e honorários advocatícios.

Às f. 268/274, o terceiro apelante alega em suas razões que a situação é diferente das discussões acerca da paternidade socioafetiva apresentada, pois não se trata de pai biológico estranho à relação, mas a uma paternidade que hoje é também socioafetiva, em virtude da convivência de ambos e, portanto, tão-somente, visa regularizar uma situação de direito seu e de seu filho. Requer, nessa monta, o reconhecimento da paternidade de L. por seu pai biológico L.F.F.T.

Contra-razões apresentadas em face da primeira, segunda e terceira apelações, respectivamente às f. 255/260, 261/265 e 300/313.

Às f. 323/326, o ilustre Representante do Ministério Público opinou pelo conhecimento e provimento parcial dos recursos aviados pelo Ministério Público de primeiro grau e por F.J.V, e pelo desprovimento do recurso interposto por L.F.F.T.

Primeira apelação regularmente processada, isenta de preparo, nos termos do art. 511, § 1º, do CPC. Quanto à segunda e terceira apelações, preparos regulares, respectivamente, às f. 229 e 267.

Presentes os pressupostos legais de admissibilidade e, em atenção ao disposto no art. 105 do CPC, conheço, simultaneamente, dos recursos.

No que tange à preliminar suscitada pelo segundo apelante de ilegitimidade ativa do autor da demanda, entendo que não merece ser acolhida. Se não, vejamos.

De acordo com o art. 1.604:

“Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade”.

Na hipótese dos autos, F.J.V. procedeu ao registro civil de L.F.V. , como se seu pai fosse, porquanto, casado com J.D.T.F., mãe do infante. Entretanto, restou comprovado, através do exame de DNA de f. 12/15, que o pai biológico do menor é o demandante L.F.F.T., tendo esse último ingressado em juízo requerendo o reconhecimento da sua paternidade. O referido exame faz prova convincente do alegado, demonstrando, conseqüentemente, a falsidade do registro da criança.

Sabe-se que o reconhecimento dos filhos através de registro público é irrevogável; no entanto, tal fato não implica a vedação de questionamentos em torno da filiação, desde que haja elementos suficientes para buscar a desconstituição do reconhecimento anteriormente formulado.

Por oportuno, acerca do tema, vale lembrar a lição do mestre Fabrício Zamprogna Matiello, in Código Civil Comentado, 2. ed., Ed. LTR, 2005, p.1.046:

“Conforme frisado retro, a filiação constante do termo de nascimento é oponível contra todos, sendo tomada, enquanto perdurar a presunção, como verdade insuscetível de contestação por quem quer que seja. A ninguém se permite afirmar ou invocar estado diverso daquele que resultado registro de nascimento, a menos que à alegação some-se prova cabal de ter havido erro ou falsidade quando da sua lavratura. A prevalência do registro é relativa; a lei preocupada em preservar a credibilidade dos assentos e da fé pública, admite que qualquer pessoa legitimamente interessada (o próprio registrado, o cônjuge que não declarou o conhecimento, terceiro, etc.) tenha acesso às vias ordinárias para vindicar estado contrário ao mencionado nos livros oficiais, mas exclusivamente nos casos de erro ou falsidade”.

Em algumas situações excepcionais, como a do caso dos autos, é possível produzir a derrubada da firmeza do conteúdo registral, configurando-se a relatividade de sua presunção de veracidade. Nesse sentido, constata-se a legitimidade do autor em vindicar sua paternidade, pois que devidamente comprovada, restando evidenciada a falsidade ideológica do registro cartorial do menor. O reconhecimento da falsidade do registro constitui forma pertinente e eficaz de estabelecer a verdade das coisas, evitando a subsistência de informações cartoriais viciadas e potencialmente capazes de produzir danos ou constrangimentos a outrem ou, até mesmo, à própria criança.

Rejeito a preliminar.

DES. ALMEIDA MELO – De acordo.

DES. CÉLIO CÉSAR PADUANI – De acordo.

DES. DÁRCIO LOPARDI MENDES – Passo ao exame do mérito.

Tendo em vista as informações constantes nos autos, verifica-se que, em junho de 2003, J.D.T.F. e F.J.V. se separaram judicialmente, e a mãe da criança permaneceu com a guarda dos filhos. Posteriormente, em dezembro de 2004, a mesma contraiu matrimônio com L.F.F.T., que veio a conviver e a descobrir sua paternidade biológica em relação a L.

De acordo com o estudo social e psicológico realizado às f. 86/91, observa-se que o menor, hoje, com 07 (sete) anos de idade, nutre vínculos de afeto com F. e F., pois que ambos se revelaram pessoas significativas em sua vida, “pessoas capazes do ponto de vista psicológico, e interessados em participar efetivamente do desenvolvimento psicossocial de L.”.

No entanto, reconhecer F. e F., simultaneamente, pais da criança,é algo extremamente absurdo, pelas seqüelas emocionais que pode acarretar à criança com o passar dos anos. Toda pessoa deve ter um referencial materno e outro paterno. É a conseqüência natural da vida em família, por mais avançada e liberal que a sociedade esteja. Sujeitar uma criança a este disparate seria o mesmo que sujeitá-la a inúmeros questionamentos ao longo de sua vida, tendo em vista a anormalidade da situação de ter em seu registro o nome de dois pais e de uma mãe, e, até mesmo, submetê-la a constrangimentos em sua vida social e profissional.

A primazia da dignidade humana perante todos os institutos jurídicos é uma característica forte da nossa atual Constituição Federal, e foi nesse sentido, e em face da valorização da pessoa humana em seus mais diversos ambientes, inclusive no núcleo familiar, que surgiu o Princípio do Melhor Interesse da Criança.

De acordo com tal princípio, deve-se preservar ao máximo aqueles que se encontram em situação de fragilidade. A criança e o adolescente encontram-se nesta posição por estarem em processo de amadurecimento e formação da personalidade. O menor tem, assim, o direito fundamental de chegar à condição adulta sob as melhores garantias morais e materiais.

São estas as diretrizes adotadas pelo legislador constituinte de 1988:

“Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu, em seu artigo 3º, que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais à pessoa humana, assegurando-lhes “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e igualdade”.

Muito embora se tenha criado um vínculo afetivo forte entre F.J.V. e o menor L.F.V. , vínculo esse caracterizador da paternidade socioafetiva, entendo que, no caso em tela, esta não deve prevalecer sobre a paternidade biológica. É de se notar que o menor, desde o seu nascimento até os três anos de vida, conviveu com o pai registral, com ele formando um vínculo de afeto. No entanto, a união de sua mãe com o requerente formou um novo núcleo familiar, em que o menor já nutre também pelo pai biológico uma vinculação afetiva baseada na amizade e no carinho, conforme pode se auferir do estudo social presente nos autos.

É notório nos dias atuais o fato de que a paternidade afetiva vem assumindo grande importância, já que a posse do estado de filho é que gera os efeitos jurídicos capazes de definir a filiação, havendo inclusive quem pense que a paternidade socioafetiva deve prevalecer sobre a biológica. Contudo, a Constituição Federal tornou equivalentes os laços de afeto e de sangue, acabando com a discussão sobre qual dessas é a verdadeira filiação.

Saliente-se que a escolha por qualquer um dos pais trará descontentamento e tristeza para o infante, que já adquiriu, com o passar do tempo, carinho e amor por “ambos os pais”, abalando o seu emocional. Portanto, o mais coerente é que seja observada a situação que trará mais conforto e segurança à identidade de L., em atenção ao Princípio do Melhor Interesse da Criança, conforme esposado anteriormente.

In casu, tenho que o melhor para o menor é que seja reconhecida a paternidade biológica de L.F.F.T., não se tratando tal medida de consideração do liame consangüíneo em prevalência ao laço afetivo e social consolidado com o pai registral. Isto porque o requerente nutre pelo menor uma situação de carinho, respeito, afeto e dedicação, além, é claro, dos laços biológicos que os unem. Assim, o demandante também nutre por L. uma relação paternal afetiva. É de se notar, ainda, que há uma convivência diária familiar pacífica e harmoniosa entre o menor, sua mãe e F., o pai biológico.

O demandante já incorporou o papel de verdadeiro pai da criança, dando-lhe todo o apoio físico e moral, cuidando para que a recém descoberta da paternidade não lhe traga qualquer desconforto, custeando-lhe, inclusive, acompanhamento profissional de apoio, além de arcar com grande parte de seus gastos, uma vez que a pensão que percebe a título de alimentos de seu pai registral se demonstra insuficiente para o custeio de suas despesas.

Ainda é de se notar que constitui direito do menor L.F.V. ter registrado, em sua certidão de nascimento, o patronímico familiar correto, com o nome de seu verdadeiro pai.

Nesse sentido, já se posicionou o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“Ação de retificação de registro civil – Reconhecimento de paternidade por terceiro que não o constante do registro – Exame de DNA comprovatório – Conseqüência jurídica inafastável: anulação do registro e averbação dos dados corretos – Confirmação da sentença.

– Na virada do milênio, com a valorização dos atributos da dignidade da pessoa humana e seu patrimônio genético, é inconcebível manter hígido falso reconhecimento de paternidade, pela nocividade para o plano afetivo da família, a relação de dependência econômica e o interesse social que a descoberta da exclusão genética pelo teste DNA provoca nestes setores” (TJMG – Apelação Cível nº 1.0480.03.048481-4/002, Relator Des. Silas Vieira, j. em 13.10.2005, publicação no DJ em 03.02.2006).

Ante o exposto, e pelas razões ora aduzidas, rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa, dou provimento à terceira apelação e nego provimento à primeira e segunda apelações, reconhecendo a paternidade de L.F.F.T., pai biológico de L.F.V., em detrimento da paternidade de F.J.V., determinando seja alterado o registro de nascimento do menor, para dele constar, no que tange à filiação, apenas o nome do pai biológico, passando a criança a se chamar L.F.T., devendo ser incluídos também em sua certidão de nascimento os nomes dos avós biológicos e excluídos os nomes dos avós afetivos.

Condeno o segundo apelante no pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, arbitrados no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), em atenção ao que dispõe o § 4º do art. 20 do CPC.

Custas recursais, pelo segundo apelante, isento o primeiro recorrente de seu pagamento, por força de lei.

DES. ALMEIDA MELO – L.F.V. acha-se registrado como filho de F.J.V. L.F.F.T. pretende alterar o registro para tornar-se inscrito como pai. O Juiz julgou parcialmente procedente a ação e fez registrar L.F.V. como filho de L.F.F.T. e como filho afetivo de F.J.V.

A rigor, não se trata de procedência parcial da ação, mas de procedência total da ação cumulada com julgamento ultra petita, uma vez que a pretensão de L.F.F.T. não incluía, nem eventualmente, o registro em nome de F.J.V. A averbação, de pronto, deve ser decotada da sentença.

Quanto ao mérito propriamente dito, resta ser verificado se L.F.F.T. tem direito ao registro.

Dentro dos critérios atuais da civilização, o exame DNA é considerado de valor absoluto. Os direitos à filiação e à paternidade são imprescritíveis. Logo, o registro que se fez em desacordo com a verdade pode ser anulado, a qualquer tempo, por erro de fato.

Resta resolver se o registro em nome do pai afetivo, que não é pai biológico, constitui erro de fato e enseja a modificação do registro, pois não se questiona a ligação sentimental e afetiva entre F.J.V. e L.F.V. . Por isso que não há dúvida, no processo, sobre a paternidade e a filiação afetivas.

Sou obrigado à pergunta bíblica: “Que é a verdade?” Para aqueles que defendem a relativização da coisa julgada, é o DNA, a prova biológica. Para os que valorizam o teor social da paternidade sobre o teor biológico, é a afeição e o sentimento comprovados. Vê-se que há duas verdades absolutas e antagônicas das quais, dependendo da posição do julgador, decorrerão conseqüências também inconciliáveis e excludentes, a não ser que se conclua pela dupla paternidade, que já foi chamada de “bigamia parental”. Figura de monstro ou figura de desprendimento e de amor que poderá se transformar em figura de torpeza e de avareza.

Particularmente, sou bastante ligado à paternidade afetiva ou sentimental. Fui muito sensível ao pioneiro e revolucionário escrito do Prof. João Baptista Vilela – A desbiologização da paternidade, Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, ano XXVII, p. 21, 1979. Acreditei muito na paternidade afetiva, em que o amor está para o Direito de Família como a vontade para o Direito das Obrigações e tive prova, em minha vida, desta verdade salutar. Valorizo mais a paternidade afetiva, desinteressada e altruísta, sobre a frieza da ligação biológica.

Embora a ligação afetiva tenha relevante valor social, a lei brasileira de registros públicos não prevê a possibilidade jurídica do registro a este fundamento. O registro será sempre em nome do pai biológico, ou seja, nascido, ou não, do casamento. Com este sentido são compreendidos os arts. 54, § 7º, e 60 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, aditado este pelo § 6º do art. 227 da Constituição da República.

“Art. 54. O assento do nascimento deverá conter: (…) 7º) os nomes e prenomes dos pais, o lugar do cartório onde se casaram, a idade da genitora do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio e residência do casal”.

“Art. 60. O registro conterá o nome do pai ou da mãe ainda que ilegítimos, quando qualquer deles for o declarante”.

“Art. 227. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

A legislação brasileira dispõe sobre o conteúdo preciso do assento do nascimento, no art. 54 da Lei 6.015, e somente prevê averbações nos casos do art. 102. O art. 47 da Lei nº 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente) admite que o vínculo da adoção se constitui por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mandado do qual não se fornecerá certidão.

Não ocorre previsão de processo e julgamento de estado de filiação afetiva.

Logo, a autorização judicial para a inscrição da paternidade afetiva pode gerar tumulto e insegurança jurídica nas relações familiares, sem preexistirem normas de direito civil e de registros públicos a esse respeito. As famílias tornar-se-ão reféns das convicções dos juízes em matéria que não é resolvida pela natureza. As conseqüências jurídicas da inscrição não poderão ser irrelevantes e, oportunamente, poderão ser questionados direitos relativos à sucessão, aos alimentos e a outras matérias pertinentes ao estado de filiação. Sendo duplo o registro, porque a inscrição não deixa de ser registro, terá direito o filho perante ambos os pais e a seus futuros espólios? Esta indagação, entre outras, não se acha convenientemente resolvida pela legislação brasileira de forma a tranqüilizar o juiz quanto à construção de um registro com o propósito imediato de atender a um reclamo afetivo ou sentimental.

No passado, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou situação em que se pedia o reconhecimento da paternidade biológica em relação a menor adotado. Considerou-se o art. 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que desliga o adotado de qualquer vínculo com pais e parentes, salvos os impedimentos naturais.

Naquele caso, o Ministro Eduardo Ribeiro, ao decidir, entendeu que, “se os vínculos jurídicos desaparecem, não se podem extinguir os laços naturais e, por isso mesmo, persistem os citados impedimentos. E pode corresponder a uma respeitável necessidade psicológica o conhecimento dos pais biológicos. De qualquer sorte, algum interesse jurídico resta, em razão dos óbices ao casamento” (Recurso Especial nº 127.541 – Rio Grande do Sul, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, julgado em 10 de abril de 2000 e publicado no DJ de 28 de agosto de 2000).

Consta, ainda, do voto do Ministro Eduardo Ribeiro:

“Não me animaria, ademais, a excluir por completo a possibilidade de se pedir alimentos, não obstante os termos do mencionado artigo 41. Suponha-se a hipótese de criança de tenra idade, cujos pais adotivos viessem a falecer ou a cair na miséria. Parece-me que a ela, que não foi ouvida sobre a adoção, não se poderia impedir de pretender alimentos de seus pais biológicos. É o direito à vida que está aí envolvido.

Não se nega que haja algumas dificuldades práticas, entre elas a de complementar-se um registro que terá sido cancelado. São questões menores, entretanto. Em verdade, o registro não será indispensável, dado que escassas, como visto, as conseqüências jurídicas.

Parece-me que correta a conclusão a que chegou Antônio Chaves, ao afirmar que `no nosso direito não existe base legal alguma para proibir o reconhecimento do adotado e menos ainda a determinação judicial da filiação`, embora considere que isso seria conveniente de lege ferenda. O que no ordenamento pátrio existe é norma admitindo amplamente o reconhecimento do estado de filiação (art. 27 da Lei 8.069)”.

Naquele precedente, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso e determinou ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que decidisse o mérito, ou seja, processar e julgar a investigação da paternidade biológica.

Na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, encontrei situação inversa à presente. Registrada a filha, em nome dos pais afetivos, falecidos estes, pretendeu investigar a paternidade contra o espólio do pretenso pai biológico. O Tribunal entendeu que a paternidade social tinha mais valor que a biológica e desprezou, por imoral, o pedido da investigação. Considerou que seria inadmissível que a requerente convivesse durante cinqüenta anos com os pais afetivos e, mortos estes, viesse buscar-lhes a herança. Considerou o Tribunal compreensível que até houvesse a reivindicação de alimentos, porém, jamais, a alteração do registro, uma vez que a verdade social da paternidade está acima do DNA, da verdade formal (Apelação Cível nº 70010973402, Relator o Desembargador Rui Portanova, julgada em 4 de agosto de 2005).

No julgamento da Apelação Cível nº 70014442743, Relatora a Desembargadora Maria Berenice Dias, julgada em 26 de abril de 2006, a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou viável a investigação biológica da paternidade, tendo em vista o direito que o filho tem de saber o seu verdadeiro pai, inclusive para o fim dos impedimentos matrimoniais, que são ressalvados pela legislação do caráter irreversível da adoção. Naquele julgamento, ficou claro que interesses de ordem econômica, como aqueles à herança, não se achavam, ipso facto, reconhecidos, nem tampouco a alteração do registro.

Vê-se que a orientação do evoluído Tribunal gaúcho prestigia a paternidade afetiva. Em face da “adoção à brasileira”, ora enseja a investigação biológica, ora a permite com reserva.

Reputo o sentimento de afeição, como o de compreensão, daqueles mais nobres do ser humano. Devem ser vistos estes sentimentos e estimulados, reconhecidos como da parte boa da natureza do homem. Acaba de causar-me profunda impressão positiva o fato de convite de formatura retratar, ao lado do nome do formando, o do pai in memoriam e, ao lado deste, provavelmente o do pai afetivo.

Podem existir razões fortes para a pretensão atual. Nem me parece ser esta absurda. A legislação brasileira provavelmente evoluirá para resolver casos como este. Certamente a futura lei será facultativa, e caberá ao juiz somente verificar a sinceridade e a honestidade do propósito para autorizar a inscrição. Será necessário, porém, que o legislador bem cuide das diversas conseqüências previsíveis, evite a imoralidade e prestigie a boa-fé. Entretanto, até o presente, não estou autorizado a completar a legislação privativa da União e criar caso novo de inscrição no registro civil. É preciso firmar que a legislação do registro público exige rigor e interpretação estrita, não abrindo margem ao juiz para construção, a seu critério, a fim de que não se ponha em risco a estabilidade das relações jurídicas, especialmente quando se trata de direitos indisponíveis, e não se aumente ainda mais a insegurança por que passa a família, a sociedade e o povo.

Ponho-me de acordo com o voto do Relator.

DES. CÉLIO CÉSAR PADUANI – De acordo.

Súmula – REJEITARAM A PRELIMINAR, DERAM PROVIMENTO À TERCEIRA APELAÇÃO E NEGARAM PROVIMENTO À PRIMEIRA E SEGUNDA APELAÇÕES.

 

Fonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais