Jurisprudência mineira – Ação de reintegração de posse – Posse adquirida mediante a cláusula constituti na escritura pública de compra e venda – Possibilidade

JURISPRUDÊNCIA CÍVEL

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – POSSE ADQUIRIDA MEDIANTE A CLÁUSULA CONSTITUTI INSERIDA NA ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA – POSSIBILIDADE – REQUISITOS DO ART. 927 DO CPC – AUSÊNCIA – INDEFERIMENTO DA LIMINAR – RECURSO DESPROVIDO
 
– Conforme precedentes do STJ, a cláusula constituti é uma das formas de transferência e aquisição da posse, sendo cabível, em caso de esbulho, sua defesa por meio da ação reintegratória.
 
– Para que seja concedida a liminar de reintegração de posse, devem estar presentes os requisitos exigidos no art. 927 do CPC, quais sejam: existência de posse, por parte da agravada; esbulho, praticado pelo agravante há menos de ano e dia; e a perda da posse.
 
– Ausentes os requisitos exigidos pelo art. 927 do CPC, deve-se indeferir a liminar de reintegração da agravada na posse do imóvel sub judice.
 
Recurso provido.
 
Agravo de Instrumento Cível nº 1.0394.13.006539-1/001 – Comarca de Manhuaçu – Agravante: Vicente Pimentel Rhodes – Agravado: Neide Antunes Nunes Godinho – Relator: Des. Eduardo Mariné da Cunha 
 
ACÓRDÃO
 
Vistos etc., acorda, em Turma, a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à unanimidade, em dar provimento ao recurso.
 
Belo Horizonte, 17 de outubro de 2013. – Eduardo Mariné da Cunha – Relator.
 
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
 
DES. EDUARDO MARINÉ DA CUNHA – Trata-se de agravo de instrumento interposto por Vicente Pimentel Rhodes, em face da decisão de f. 37-TJ, que, nos autos da ação possessória movida por Neide Antunes Nunes Godinho, deferiu a liminar de reintegração de posse em favor da autora, ora agravada, determinando ao réu, ora agravante, que desocupasse o imóvel no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária no valor de R$200,00 (duzentos reais), até o limite de R$20.000,00 (vinte mil reais).
 
Sustenta o agravante que nunca firmou contrato de comodato verbal com a agravada e que jamais esbulhou a posse que esta exerce sobre parte do imóvel denominado "Córrego do Limoeiro". Alega que os documentos acostados aos autos (boletim de ocorrência e notificação extrajudicial) não comprovam o esbulho possessório. Argumenta que também adquiriu uma parcela do "Córrego do Limoeiro", que não se confunde com a fração pertencente à agravada. Defende que não estão presentes os requisitos previstos no art. 927 do CPC, pelo que deve ser indeferida a liminar reintegratória. Pugna pela concessão do efeito suspensivo e, no mérito, pelo provimento do recurso.
 
Às f. 58/63-TJ, o recurso foi recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo.
 
O Magistrado a quo prestou informações à f. 80-TJ, noticiando que a decisão foi mantida e que o agravante cumpriu o disposto no art. 526 do CPC.
 
Contraminuta oferecida às f. 82/86-TJ, em que a agravada se pauta pelo desprovimento do recurso.
 
É o relatório.
 
Conheço do recurso, pois presentes os requisitos intrínsecos e extrínsecos de sua admissibilidade.
 
Cinge-se a controvérsia à análise da decisão de f. 37-TJ, que deferiu a liminar de reintegração de posse em favor da autora, ora agravada, determinando ao réu, ora agravante, que desocupasse o imóvel no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária no valor de R$200,00 (duzentos reais) até o limite de R$20.000,00 (vinte mil reais).
 
Cabe esclarecer, inicialmente, dada a complexidade das questões fáticas envolvidas na presente demanda, que o imóvel original, denominado Córrego do Limoeiro, pertencia ao casal José Eugênio Sobrinho e Anacletina Cândida de Souza (cf. f. 44 e 51-TJ). O referido imóvel possuía área de 36,85,00 hectares e, por um equívoco cartorário, foi registrado sob duas matrículas distintas: 16.687 e 17.069 (vide f. 51-TJ).
 
Com o falecimento da Sra. Anacletina, o cônjuge supérstite, na condição de meeiro, passou a ser proprietário de uma área de 18,42,50 hectares, conforme certidão de f. 44-TJ (R/02 – M-17.069 – 29.370).
 
Os demais herdeiros passaram, cada qual, a deter a propriedade de 1/6 (um sexto) da metade remanescente do imóvel, como se vê, in verbis:
 
“R/01 – M-17.069 – 29.369 – 29.04.97. Transmitente – Espólio de Anacletina Cândida de Souza. Adquirente – Maria Eugênio de Oliveira […] Herdou uma sexta parte da metade do imóvel e das benfeitorias constantes da matrícula supra. 
 
[…]
 
R/03 – M-17.069 – 29.371 – 29.04.97. Transmitente – Espólio de Anacletina Cândida de Souza. Adquirente – Valdeci Eugênio de Souza […] Herdou uma sexta parte da metade do imóvel supra matriculado, e das benfeitorias.
 
R/04 – M-17.069 – 29.372 – 29.04.97. Transmitente – Espólio de Anacletina Cândida de Souza. Adquirente – Juarez Eugênio de Souza […] Herdou uma sexta parte da metade (3,07,00 ha) do imóvel e das benfeitorias constantes da matrícula retro.
 
R/05 – M-17.069 – 29.373 – 29.04.97. Transmitente – Espólio de Anacletina Cândida de Souza. Adquirente – Ormezina Eugênio Rodrigues […] Herdou uma sexta parte da metade do imóvel e das benfeitorias constantes da matrícula retro.
 
R/6 – M-17.069 – 29.374 – 29.04.97. Transmitente – Espólio de Anacletina Cândida de Souza. Adquirente – Nascimento Eugênio de Souza […] Herdou uma sexta parte da metade do imóvel e das benfeitorias em comum na matrícula retro.
 
[…]
 
R/01 – M-16.687 – 28.611 – 09.08.96. Transmitente – Espólio de Anacletina Cândida de Souza. Adquirente – José de Souza Filho […] Herdou 1/6 parte da metade do imóvel desta matrícula” (f. 44, 44-v. e 51-TJ).
 
Importa consignar que a parcela do imóvel herdada por José de Souza Filho (R/01 – M-16.687 – 28.611) foi alienada para a Sra. Neide Antunes Nunes Godinho, autora da ação e ora agravada. Veja-se:
 
“AV/02 – M-16.687 – 28.612 – 09.08.96. Certifico que o imóvel do R/01 supra foi objeto de alienação formando a matrícula nº 16.688, livro 2 (f. 51-TJ).
 
“R/01 – M-16.688 – 28.612 – 09.08.96. Transmitente – José de Souza Filho […] Adquirente – Neide Antunes Nunes Godinho” (f. 35-TJ).
 
A seu turno, o quinhão recebido por Valdeci Eugênio de Souza (R/03 – M-17.069 – 29.371), que, em verdade, se chama Valdece de Souza (cf. averbação 13 realizada no imóvel matriculado sob o nº 17.069), foi alienada para o Sr. Vicente Pimentel Rhodes, réu da ação e ora agravante. Confira-se:
 
“R-15/17.069 – Prot. 61.916 – Data 17.07.2012. Adquirente: Vicente Pimentel Rhodes […] Adquire: Uma área constante 03,07,08 ha (três hectares, sete ares e oito centiares) de terras legítimas, sem benfeitorias, em comum, em uma área maior de 36,85,00 ha, do R-03/17.069 desta matrícula. Transmitentes: Valdece de Souza […] e s/m Diomar Feliciano da Silva Souza […] Título: Compra e venda. Forma do título: Escritura pública de compra e venda” (f. 45-v.-TJ).
 
Trata-se, pois, de áreas distintas e autônomas, uma vez que o imóvel do agravante advém da herança recebida pelo Sr. Valdece de Souza, enquanto o da agravada decorre do quinhão recebido pelo Sr. José de Souza Filho. Assim, firmadas tais premissas, ainda que em sede de cognição sumária, passo a analisar se estão presentes os requisitos exigidos pela legislação processual para o deferimento da liminar possessória.
 
Os arts. 926 e 927, ambos do CPC, dispõem que:
 
“Art. 926. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho. 
 
Art. 927. Incumbe ao autor provar:
 
I – a sua posse;
Il – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;
III – a data da turbação ou do esbulho;
IV – a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração”.
 
É preciso considerar que a liminar, nas ações possessórias, é uma medida provisória que independe de cognição completa e  não exige prova plena e irretorquível para o seu deferimento.
 
Logo, em tal campo, convencendo-se o juiz de que a realidade fática é no sentido da existência de posse da autora e de esbulho praticado pelo réu há menos de ano e dia, impõe-se a reintegração liminar daquela na posse do imóvel, até final decisão.
 
Nesse sentido é a jurisprudência:
 
"Agravo de instrumento. Reintegração de posse. Liminar. Deferimento. Comprovação dos requisitos. Decisão mantida. – Nas ações possessórias, a liminar de reintegração ou manutenção de posse será deferida quando houver a comprovação pela parte autora de sua posse anterior, do esbulho ou turbação praticada pelo réu, e a data de sua ocorrência, nos termos do art. 927 do Código de Processo Civil" (TJMG, AI 1.0090.12.003597-8/001, Rel. Des. Amorim Siqueira, DJe de 17.06.2013).
 
"Agravo de instrumento. Reintegração de posse. Liminar possessória. Necessidade de preenchimento dos requisitos legais. – Presentes os requisitos exigidos pelo art. 927 do CPC, a medida liminar de reintegração de posse deferida na instância de origem deve ser mantida" (TJMG, AI 1.0027.09.191944-2/001, Rel. Des. Pedro Bernardes, DJe de 17.06.2013).
 
"Agravo de instrumento. Ação de reintegração de posse com pedido liminar. Não comprovação dos requisitos do art. 927 do CPC. Decisão mantida. Recurso improvido. – Na ação de reintegração de posse, para o deferimento de liminar, cabe ao autor provar a sua posse, a turbação ou o esbulho praticado pelo réu, a data da turbação ou do esbulho e a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, e a perda da posse, no caso de reintegração" (TJMG, AI 1.0390.12.004067-5/001, Rel. Des. Moacyr Lobato, DJe 10.06.2013).
 
Sobre as ações possessórias, confira-se o escólio de Humberto Theodoro Júnior:
 
"Nosso direito processual regula, como ações possessórias típicas, a de manutenção de posse, a de reintegração de posse e o interdito proibitório (CPC, arts. 920 a 923).
 
[…]
 
A existência de três interditos distintos decorre da necessidade de adequar as providências judiciais de tutela possessória às diferentes hipóteses de violação da posse.
 
Assim, a ação de manutenção de posse (que corresponde aos interdicta retinendae possessionis do direito romano) destina-se a proteger o possuidor contra atos de turbação de sua posse. Seu objetivo é fazer cessar o ato do turbador, que molesta o exercício da posse, sem contudo eliminar a própria posse.
 
Já a ação de reintegração de posse (antigo interdito recuperandae possessionis dos romanos) tem como fito restituir o possuidor na posse, em caso de esbulho. Por esbulho deve-se entender a injusta e total privação da posse, sofrida por alguém que a vinha exercendo.
 
[…]
 
Finalmente, o interdito proibitório é uma proteção possessória preventiva, uma variação da ação de manutenção de posse, em que o possuidor é conservado na posse que detém e é assegurado contra moléstia apenas ameaçada. Esse interdito, portanto, é concedido para que não se dê o atentado à posse, mediante ordem judicial proibitória, na qual constará a cominação de pena pecuniária para a hipótese de transgressão do preceito (CPC, art. 932)" (Curso de direito processual civil. 43. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, v. III, p. 115).
 
Assim, para a outorga da tutela liminar recuperandae possessionis, mister se faz que a autora comprove sua posse anterior e o esbulho praticado pelo réu há menos de ano e dia (art. 924 do CPC). Ausente qualquer um desses requisitos, nega-se amparo à pretensão liminar.
 
No caso dos autos, entendo que os requisitos exigidos pela legislação processual para o deferimento da liminar possessória não foram preenchidos pela autora, ora agravada. 
 
A "escritura pública de compra e venda" (f. 36-TJ) comprova a alienação do imóvel (R/01 – M-16.687 – 28.611) para a agravada, bem como a transferência da posse, por meio da cláusula constituti:
 
"[…] e que, desde já, pela cláusula constituti, cede e transfere à dita compradora toda posse, domínio, direito e ação que tinha no referido imóvel" (f. 36-TJ).
 
Sobre a aquisição da posse através da cláusula constituti, confira-se a jurisprudência do c. STJ: 
 
"Agravo regimental. Ação de reintegração de posse. Aquisição de bem. Cláusula ‘constituti’. Existência. Reintegração. Requisitos legais. Presença. Precedentes. Mera repetição dos argumentos do agravo em recurso especial nas razões recursais. – 1. A cláusula constituti revela-se como uma das formas de aquisição de posse, ainda que indireta. Cabível, portanto, a ação de reintegração de posse para a discussão de esbulho. Precedentes. 2. Ao repisar os fundamentos do recurso especial, a parte agravante não trouxe, nas razões do agravo regimental, argumentos aptos a modificar a decisão agravada, que deve ser mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos. 3. Agravo regimental não provido" (STJ, Quarta Turma, AgRg no AREsp 10.216/PE, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe de 11.03.2013).
 
"Civil. Posse. Constituto possessório. Aquisição fictícia (CC. art. 494, inciso IV). Reintegração de posse. Cabimento. Comodato verbal. Notificação. Escoamento do prazo. Esbulho. Aluguel, taxas e impostos sobre o imóvel devidos. Recurso provido. – I – A aquisição da posse se dá também pela cláusula constituti inserida em escritura publica de compra e venda de imóvel, o que autoriza o manejo dos interditos possessórios pelo adquirente, mesmo que nunca tenha exercido atos de posse direta sobre o bem. II – O esbulho se caracteriza a partir do momento em que o ocupante do imóvel se nega a atender ao chamado da denúncia do contrato de comodato, permanecendo no imóvel após notificado. […]" (STJ, Quarta Turma, REsp 143.707/RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 02.03.1998).
 
"Posse. Ação de reintegração. Cláusula constituti. Outorga uxória. – O comprador de imóvel com cláusula constituti passa a exercer a posse, que pode ser defendida através da ação de reintegração. Recurso não conhecido" (STJ, Quarta Turma, REsp 173.183/TO, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 19.10.1998).
 
Logo, afigura-se-me comprovada a posse da agravada sobre 1/6 da metade do imóvel denominado "Córrego do Limoeiro", em razão da cláusula constituti inserida na escritura pública de compra e venda (f. 36-TJ).
 
Todavia, não restou comprovado o esbulho possessório, pois, por ora, inexistentem provas de que a área ocupada pelo agravante seja aquela cuja posse e propriedade pertencem à agravada (R/01 – M-16.687 – 28.611), e, não, aquel’outra, que legitimamente lhe pertence, eis que também adquiriu a propriedade de 1/6 da metade do imóvel denominado "Córrego do Limoeiro" (R/03 – M-17.069 – 29.371), assim como sua posse, por meio da cláusula constituti inserida na escritura pública de f. 43-TJ).
 
Não se pode, pois, nesse momento de cognição incompleta, afirmar que o agravante esteja esbulhando a posse que a agravada exerce sobre sua fração ideal do imóvel, uma vez que as áreas nem sequer estão delimitadas, e ambos são legítimos possuidores de parcelas distintas do "Córrego do Limoeiro".
 
Nesse sentido, colhe-se da jurisprudência deste e. Tribunal:
 
"Processual civil e civil. Reintegração de posse. Nulidade da sentença. Apresentação de memoriais. Fração ideal de terra. Posse não localizada. – O art. 454, § 3º, do CPC confere uma faculdade ao juiz condutor da causa, e não um dever. Por isso, não há nulidade na sentença se, em momento posterior e em razão de sua discricionariedade na condução do processo, o magistrado não autoriza a juntada de memoriais e não há prejuízo para a parte (no que tange ao exercício do contraditório e da ampla defesa) – Se o autor não faz prova do exercício da posse em área perfeitamente delimitada, posse localizada, em área indivisa, o pedido de reintegração de posse deve ser julgado improcedente" (TJMG, AC 1.0251.08.025186-0/003, Rel. Des. José Flávio de Almeida, DJe de 13.10.2009).
 
"Possessória. Reintegração de posse. Área não delimitada. Impossibilidade. – Na ação de reintegração de posse, a área esbulhada há de ser certa e determinada, sob pena do indeferimento do pedido" (TJMG, AC 2.0000.00.362560-3/000, Rel. Des. Domingos Coelho, DJ de 10.08.2002).
 
Pelas razões expostas, dou provimento ao agravo de instrumento para indeferir a liminar de reintegração da agravada na posse do imóvel sub judice.
 
Custas, pela agravada, cuja exigibilidade se suspende por litigar amparada pela gratuidade judiciária.
 
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Luciano Pinto e Márcia De Paoli Balbino.
 
Súmula – RECURSO PROVIDO.


Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG