Artigo – A crise coeva da fé pública extrajudicial – Por Ricardo Dip

Sabe-se da importância da fé pública – atributo delegado pela soberania política nas instituições das notas e dos registros –, importância que a doutrina sempre reconheceu, até por, historicamente, não se caracterizar o notariado latino antes da delegação desta potestade de fé aos scribæ medievos, a partir dos séculos XII e XIII.

É dizer que, na Antiguidade, no Direito justinianeu e na Alta medieval, exatamente à míngua da potestade de dação da fé pública, não havia, ainda, o notário do tipo latino, mas somente o escriba seu ancestral. Era este, é bem verdade, nutrido de uma trajetória de probidade (lembremo-nos aqui, brevitatis causa, dos juramentos notariais cuja origem remonta ao início do século IX) e de um constante e paulatino aprendizado, mediante a experiência das artes do trivium, mormente da retórica, a cujo estudo e prática tiveram os antigos escrivães de, com resignação, recorrer, desde que Justiniano, por meio da Constituição Omnem (16/12/533), restringiu em muito os lugares onde se poderia, então, estudar o Direito.

Embora não seja uma instituição criada pelo Estado, mas, isto sim, predominantemente uma instituição comunitária, social, em muito tributária de gestação anterior ao concurso do poder político, o notariado latino não se completa em sua configuração sem que se acrescente à auctoritas comunal a potestas da fé pública que lhe foi delegada pelo poder político. Desta maneira, o elemento publicístico fundamental na caracterização do notário latino é o da dação da fé pública, a que se pode agregar a tarefa de controle da legalidade, ao passo em que seus elementos privatísticos – ou, talvez melhor, comunitários – podem resumir-se no caráter liberal de sua profissão jurídica.

Os tempos atuais são de crise teórica e prática da fé pública extrajudicial.

Parecerá um tanto surpreendente, neste quadro, e dada a vistosa relevância que se deve apontar no status público das funções do notário e do registrador – na medida em que, seguindo um modo simplificado de dizer, são "testemunhas qualificadas", a ponto de suas asserções só perderem em via jurisdicional a presunção de que exatas e integrais (cf., a propósito, o art. 427 do Código nacional de Processo Civil) –, mas, repete-se: parecerá um tanto surpreendente que a atual Lei brasileira de Registros Públicos, a 6.015/1973 (de 31/12), nenhuma referência contenha ao termo "fé pública" extrajudicial  (tampouco esse termo se mencionou no regulamento registral de 1939 – decreto 4.857, de 9/11/1939, ou em um seu antecedente, o decreto 370, de 2/5/1890, ou, em mais remota normativa de registro, a lei imperial 1.237, de 24/9/1864).

Também silentes em nomeá-la o Código Civil brasileiro de 1916 e a lei 7.433/1985 (de 18/12; a frequentemente apodada "lei das escrituras"), a fé pública foi referida, entretanto, em três de nossas leis civis mais recentes: no Código Civil de 2002 (art. 215), no Código de Processo Civil de 2015 (art. 427) e, antes, no art. 3º da lei 8.935/1994 (de 18/11: "Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro").

Ainda que a carência de robustez de textos normativos muito haja influído negativamente no tratamento doutrinário que se tem dado entre nós ao tema da fé pública extrajudicial – porque, por mais que estejamos nos tempos teóricos de um delenda Kelsen, há um dominante positivismo implícito em amplo número de nossos doutrinadores (a que se junta o positivismo sociológico do ativismo jurisdicional e judicial-administrativo) –, não se podem ignorar algumas incursões relevantes neste capítulo, desde o excelente (mas incompleto) Órgãos da fé pública, de João Mendes Júnior, até a, sem embargo de concisa, substancial incursão de Walter Ceneviva, em seu Lei dos notários e dos registradores comentada, em que esta especial modalidade de fé pública, a extrajudiciária, conceitua-se tanto certeza (aspecto subjetivo) quanto verdade (aspecto objetivo) do que em seus livros oficiais assentam os notários e registradores, bem assim quanto ao que eles certificam, no exercício de suas funções.

Os tempos atuais são de crise teórica e prática da fé pública extrajudicial. Há quem diga até mesmo tratar-se de anarquia funcional, tamanha a confusão que neste assunto se estabeleceu, quer de fato, quer num plano normativo, e não só entre os diferentes modos de fé extrajudicial, mas também em relação a seus vários efeitos endógenos. Determinações judiciário-administrativas de reconhecimento de firma em cartórios de registro; autorizações para que títulos judiciais sejam extraídos pelo extrajudicial; tabelionização do judiciário substituinte do notariado em matéria de inventários, separação e divórcio; certificações de escrivães judiciais relativas a fatos estranhos aos livros e processos de seus ofícios; ruptura do princípio da imediatidade notarial, etc. – eis aí um conjunto de episódios que anuncia a confusão e prognostica problemas avistavelmente graves.

Fazem falta, para logo, algumas distinções modais. A fé notarial e a registrária possuem alguns aspectos comuns – assim, a fé de confirmação (fides confirmationis) e a fé de confecção (fides confectionis) que dão espeque às certificações de assentos lançados em seus livros ou de processos constantes de seus correspondentes ofícios. Mas a fé pública notarial apresenta duas outras dimensões que não se encontram na fé pública do registrador: a fides cognitionis (i.e., a fé de conhecimento) e a fides notariorum stricto sensu, que é a fé mais típica dos notários, moldada, ainda que com alguma insuficiência, ao aforismo clássico de visu et auditu suis sensibus (do que se vê e se ouve pelos próprios sentidos, vale dizer, pela visão e audição).

Para que se tenha um exemplo atual da anarquia entre nós estabelecida quanto a estas duas modalidades, consideremos o fenômeno da "notarialização" (passe o neologismo) do registrador no processo extrajudicial de usucapião, objeto do art. 1.071 do vigente Código de Processo Civil (ou art. 216-A da lei 6.015, de 1973). Essa notarialização do registrador é propiciada por dois motivos: um, o de que ele próprio, registrador, gera o título que vai registrar (e formar título no extrajudicial, seja no aspecto propriamente jurídico, seja no plano documentário, é próprio do tabelião de notas e não do registrador, ressalvada a hipótese de certidões); segundo, porque, dando-se o caso da necessidade de vistoria do imóvel ou de audiência de testemunhas pelo registrador, ali haverá possível exercício da fides notariorum ex visu et auditu, e quanto à audiência, além desta modalidade de fé, também a da fides cognitionis.

De par com isto, esta relativamente moderna instituição do processo extrajudicial de usucapião trouxe à tona um problema que exige detida consideração: o discrimen das partes da ata notarial e, nelas, a distinção entre o que atrai a eficácia analítica e a eficácia sintética da fé pública notarial. Como se diz em bom português, "é assunto para mais de metro", a cujo estudo se convocam os doutrinadores de boa vontade.

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

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*Ricardo Dip é desembargador do TJ/SP, desde janeiro de 2005. Magistrado de carreira, com ingresso no Judiciário paulista em 1979, foi juiz do Tribunal de Alçada Criminal do mesmo Estado, a partir de 1994. Presidiu a Turma Especial de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi secretário-geral da Escola Paulista da Magistratura. No biênio 2016-2017, presidiu a Seção de Direito Público dessa Corte. Atualmente, além das funções jurisdicionais na 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça paulista, é supervisor da Biblioteca e coordenador do Departamento de Gestão do Conhecimento Judiciário do mesmo tribunal. 

 

Fonte: Migalhas

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