Artigo – O Estatuto da Pessoa com Deficiência sob a Perspectiva de Notários e Registradores – Por Letícia Franco Maculan Assumpção

1- Introdução
 

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi assinada em Nova Iorque, Estados Unidos da América, em 30 de março de 2007 (BRASIL, 2015).
 

Conforme art. 1º da Convenção de Nova Iorque, seu objetivo é: "promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente".
 

Até o momento, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é a única convenção aprovada e promulgada pelo quórum de votação previsto pelo art. 5º, §3º [1] da Constituição da República Federativa do Brasil [2], parágrafo esse que foi incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004. Em 10 de julho de 2008, foi aprovada pelo Presidente do Senado, por meio do Decreto Legislativo nº 186 e promulgada pelo Presidente da República, por meio do Decreto nº 6.949, em 25 de agosto de 2009.
 

Os tratados e convenções sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos, são equivalentes às emendas constitucionais, conforme estabelece o art. 5º, §3º da Constituição.
 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, tem gerado grandes debates entre os civilistas, principalmente por acabar com a incapacidade absoluta prevista em razão de deficiência física ou mental prevista no sistema anterior.
 

No entanto, os críticos deixam de observar que se está falando de uma lei fruto de Convenção Internacional, da qual o Brasil é um dos 157 Estados que ratificaram [3]. Todos os Estados que ratificaram a Convenção devem submeter relatórios regulares para Comitê da ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, que é composto por 18 especialistas independentes internacionais.
 

Assim, não deveria haver estranhamento quanto às questões constantes da Lei nº 13.146/2015, mas sim alteração da visão que hoje vige na sociedade. E para melhor aceitar as mudanças, é necessário compreendê-las.
 

Nelson Rosenvald em recente artigo, abaixo reproduzido, muito bem resume em 11 perguntas e respostas os principais pontos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, cujas principais observações são objeto de comentários neste trabalho:
 

1) A Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD) é o primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado pelo Congresso Nacional conforme o procedimento qualificado do § 3º do art. 5º da Constituição Federal (promulgado pelo Decreto Nº 6.949/09 e em vigor no plano interno desde 25/8/2009). Como o Sr. avalia o impacto da CDPD na ordem nacional?
 

A CDPD é o primeiro tratado de consenso universal que concretamente especifica os direitos das pessoas com deficiência pelo viés dos direitos humanos, adotando um modelo social de deficiência que importa em um giro transcendente na sua condição. Por esse modelo, a deficiência não pode se justificar pelas limitações pessoais decorrentes de uma patologia. Redireciona-se o problema para o cenário social, que gera entraves, exclui e discrimina, sendo necessária uma estratégia social que promova o pleno desenvolvimento da pessoa com deficiência. O objetivo da CDPD é o de permutar o atual modelo médico – que deseja reabilitar a pessoa anormal para se adequar à sociedade -, por um modelo social de direito humanos, cujo desiderato é o de reabilitar a sociedade para eliminar os muros de exclusão comunitária. A igualdade no exercício da capacidade jurídica requer o direito à uma educação inclusiva, a vida independente e a possibilidade de ser inserido em comunidade. Por tais razões, reconhece o Preâmbulo da CDPD: “a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. (sem grifos no original)

Comentários: efetivamente, trata-se de uma mudança de modelo, com a busca de um modelo social de direitos humanos. É preciso buscar a eliminação da exclusão daquele que é diferente, por ter uma deficiência. Obviamente isso não será um processo fácil, será necessário treinamento de professores, para melhor integração nas escolas, treinamento de colegas e da chefia, para integração ao trabalho e mesmo dentro da família, de modo a reconhecer a importância do deficiente na comunidade.

2) Em 7 de Julho de 2015 foi publicada a Lei n. 13.146/15, o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A normativa entrará em vigor 180 dias após a sua publicação, com acentuada repercussão sobre todo o sistema jurídico, notadamente no plano do direito civil. Qual é exatamente o conceito de pessoa com deficiência?
 

A Lei nº 13.146/15 caminha no sentido personalista da CDPD. Em seu artigo 2º, conceitua a pessoa com deficiência como aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. De acordo com o art. 84, “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”. O § 1º do mesmo art. 84 preconiza que: “Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”. Em arremate, o § 3º aduz que, “A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível”. Portanto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência admite em caráter excepcional o modelo jurídico da curatela, porém, sem associá-la à incapacidade absoluta. A Lei nº 13.146/15 nos remete a dois modelos jurídicos de deficiência: deficiência sem curatela e deficiência qualificada pela curatela. A deficiência como gênero engloba todas as pessoas que possuam uma menos valia na capacidade física, psíquica ou sensorial – independente de sua gradação -, sendo bastante uma especial dificuldade para satisfazer as necessidades normais. O deficiente desfruta plenamente dos direitos civis, patrimoniais e existenciais. Porém, se a deficiência se qualifica pelo fato da pessoa não conseguir se autodeterminar, o ordenamento lhe conferirá proteção ainda mais densa do que aquela deferida a um deficiente capaz, demandando o devido processo legal. (sem grifos no original)

Comentários: a curatela, agora, não está mais associada à incapacidade absoluta. Poderá haver deficiência sem curatela e deficiência qualificada pela curatela. Se a deficiência se qualifica por não poder o deficiente se autodeterminar, o ordenamento lhe conferirá proteção maior do que aquela deferida a um deficiente capaz. A lei também determinou que a curatela afeta apenas os aspectos patrimoniais, mantendo o portador de transtorno mental o controle sobre os aspectos existenciais da sua vida, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, apontados no artigo 85, parágrafo 1º, do Estatuto.  Problema grave está posto para os Registradores Civis das Pessoas Naturais: como avaliar se a pessoa tem ou não capacidade para decidir sobre o casamento? Em caso de dúvida, pode o Registrador exigir laudos médicos e, persistindo a dúvida, deverá submeter a questão para decisão do Juiz competente para Registros Públicos, no próprio processo de habilitação para casamento.

3) Pela Lei n. 13.146/15, a pessoa com deficiência qualificada pela curatela será considerada incapaz?
 

Equivocam-se os que creem que a partir da vigência do Estatuto todas as pessoas que forem curateladas serão consideradas plenamente capazes. Dispõe o art. 6º que “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. Com efeito, a deficiência é um impedimento duradouro físico, mental ou sensorial que não induz, em princípio, a qualquer forma de incapacidade, apenas a uma vulnerabilidade, pois a garantia de igualdade reconhece uma presunção geral de plena capacidade a favor das pessoas com deficiência. Excepcionalmente, através de relevante inversão da carga probatória, a incapacidade surgirá, se amplamente justificada. Por conseguinte, a Lei n. 13.146/15 mitiga, mas não aniquila a teoria das incapacidades do Código Civil. As pessoas deficientes submetidas à curatela são removidas do rol dos absolutamente incapazes do Código Civil e enviadas para o catálogo dos relativamente incapazes, com uma renovada terminologia. A nova redação do inciso III, do art. 4 (Lei n. 13.146/15) remete aos confins da incapacidade relativa “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. Aqui se revela a intervenção qualitativamente diversa do Estatuto da Pessoa com Deficiência na teoria das incapacidades: Abole-se a perspectiva médica e assistencialista de rotular como incapaz aquele que ostenta uma insuficiência psíquica ou intelectual. Corretamente o legislador optou por localizar a incapacidade no conjunto de circunstâncias que evidenciem a impossibilidade real e duradoura da pessoa querer e entender – e que, portanto, justifiquem a curatela-, sem que o ser humano, em toda a sua complexidade, seja reduzido ao âmbito clínico de um impedimento psíquico ou intelectual. Ou seja, o divisor de águas da capacidade para a incapacidade não mais reside nas características da pessoa, mas no fato de se encontrar em uma situação que as impeça, por qualquer motivo, de confirmar ou expressar a sua vontade. Prevalece o critério da impossibilidade de o cidadão maior tomar decisões de forma esclarecida e autônoma sobre a sua pessoa ou bens ou de adequadamente as exprimir ou lhes dar execução

Comentários: não mais serão considerados absolutamente incapazes os deficientes, mas relativamente incapazes. Se houver a impossibilidade real e duradoura da pessoa manifestar o seu querer e entender, será necessária a curatela.

 

4) Então a Lei n. 13.146/15 não criou a nova categoria das “pessoas capazes sob curatela”?
 

É um equívoco inferir da Lei n. 13.146/15 que a incapacidade civil foi sepultada. Será que poderíamos admitir que, para o futuro, teremos uma nação composta unicamente de pessoas plenamente capazes, inclusive todos aqueles que atualmente estão curateladas por um déficit psíquico? Obviamente não. Inexiste pretensão ideológica capaz de afetar a natureza das coisas. Por mais que o legislador pretendesse (e ele não pretendeu!) criar o mundo ideal e “politicamente correto” das pessoas plenamente capazes, não há como desconstruir a realidade inerente à imperfeição humana e às vicissitudes que a todos afetam, em maior ou menor grau. Num Estado Democrático de Direito, o pluralismo demanda o respeito pelas diferenças e não o seu aniquilamento. O Estatuto da Pessoa com Deficiência não eliminou a teoria das incapacidades, porém, adequou à Constituição Federal e a CDPD. Tratando-se a incapacidade de uma sanção normativa excepcionalíssima, que afeta o estado da pessoa a ponto de restringir o exercício autônomo de direitos fundamentais, o que corretamente a Lei n. 13.146/15 impôs foi a necessidade da mais ampla proteção ao direito fundamental à capacidade civil. Resumidamente: a) haverá intenso ônus argumentativo por parte de quem pretenda submeter uma pessoa à curatela em razão de uma causa permanente; b) sendo ela curatelada, a incapacidade será apenas relativa, pois a incapacidade absoluta fere a regra da proporcionalidade; c) a curatela, em regra, será limitada à restrição da prática de atos patrimoniais, preservando-se, na medida do possível a autodeterminação para a condução das situações existenciais. (sem grifos no original)

Comentários: a curatela será limitada à restrição da prática de atos patrimoniais, devendo o juiz verificar, no caso concreto e na medida do possível, a autodeterminação para a condução das situações existenciais.

5) Por qual fundamento o Estatuto da Pessoa com Deficiência reservou a categoria dos absolutamente incapazes aos menores de 16 anos?
 

O objetivo é elogiável: suprimir a incapacidade absoluta do regramento jurídico da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual. O critério médico até então utilizado era baseado na ausência de discernimento em caráter permanente – seja ela resultante de enfermidade ou deficiência mental. A interdição do absolutamente incapaz decorria de um estado pessoal, patológico. Contudo, diante da infinidade de hipóteses configuradoras de transtornos mentais ou déficits intelectuais – seja pela origem, graduação do transtorno ou pela extensão dos efeitos – é insustentável a tentativa do direito privado do século XXI de persistir na homogeneização da amplíssima gama de deficiências psíquicas, pelo recurso ao enredo abstratizante do binômio incapacidade absoluta ou relativa, conforme a pessoa se encontre em uma situação de ausência ou de redução de discernimento. Daí a crítica ao Código Civil de 2002, que, em nome de uma suposta segurança jurídica, tencionou aprisionar a multiplicidade de quadros de desenvolvimento intelectual sob a dualidade ausência/redução de discernimento, em uma espécie de categorização a priori de pessoas em redutos de exclusão de direitos fundamentais. Não se pode mais admitir uma incapacidade legal absoluta que resulte em morte civil da pessoa, com a transferência compulsória das decisões e escolhas existenciais para o curador. Por mais grave que se pronuncie a patologia, é fundamental que as faculdades residuais da pessoa sejam preservadas, sobremaneira às que digam respeito as suas crenças, valores e afetos, num âmbito condizente com o seu real e concreto quadro psicofísico. Ou seja, na qualidade de valor, o status personae não se reduz à capacidade intelectiva da pessoa, posto funcionalizada à satisfação das suas necessidades existenciais, que transcendem o plano puramente objetivo do trânsito das titularidades.

Comentários: a incapacidade absoluta passa a ser apenas em virtude da idade, apenas para o menor de 16 anos. A deficiência para entender e decidir, bem como para manifestar a vontade terá que ser analisada profundamente no caso concreto, não mais havendo transferência compulsória das decisões e escolhas existenciais para o curador.

6) O Estatuto da Pessoa com Deficiência também alterou as normas relativas à interdição para que elas se conciliem ao novo modelo da incapacidade relativa?
 

A partir da vigência da Lei n. 13.146/15, será abolido o vocábulo “interdição”. Ele remete a uma noção de curatela como medida restritiva de direitos e substitutiva da atuação da pessoa que não se concilia com a vocação promocional da curatela especial concebida pelo estatuto. A impossibilidade de autogoverno conduzirá à incapacidade relativa ao fim de um processo no qual será designado um curador para assistir a pessoa com deficiência de forma a preservar os seus interesses econômicos. Onde reside o giro linguístico? Não será interditada como clinicamente “portadora de uma deficiência ou enfermidade mental”, mas curatelada pelo fato de objetivamente não exprimir a sua vontade de forma ponderada (art. 1.767, I, CC, com a redação dada pela Lei 13.146/15). Essa conciliação é a saída possível (e desejável) para harmonizar a proteção à pessoa deficiente com o princípio da segurança jurídica. A pessoa deficiente curatelada não consumará isoladamente atos patrimoniais, pois a prática de negócios jurídicos exigirá a atuação substitutiva ou integrativa do curador, sob pena de anulabilidade (art. 171, I, CC). Apenas serão afastadas do regramento da pessoa deficiente incapaz as normas que antes vinculavam a validade e consequente eficácia de seus atos à sanção da nulidade ou à incapacidade absoluta. Eis aí mais uma razão para corroborar a incongruência da crença em que a pessoa deficiente sempre será capaz, mas que poderá ser curatelada. Com as alterações postas pela Lei n. 13.146/15, harmonizam-se os artigos 3º, 4º e 1.767 do Código Civil, no sentido de substituir a fórmula da “ausência ou redução de discernimento” pela impossibilidade de expressão da vontade como fato gerador de incapacidade. Para o futuro, definiremos como relativamente incapaz todo aquele que for curatelado por uma causa duradoura que o prive de exprimir a sua vontade de forma a se autodeterminar. (sem grifos no original)

Comentários: não mais será utilizado o termo “interditado”, mas sim será designada a pessoa como clinicamente “curatelada por ser portadora de uma deficiência ou enfermidade mental, que a impeça de exprimir a sua vontade de forma a se autodeterminar”.

7) Se a pessoa deficiente não possuir a mínima aptidão para o autogoverno, será somente assistida pelo curador, já que se trata de curatela por incapacidade relativa?
 

Por uma imposição ética, o Estatuto da Pessoa com Deficiência atraiu todos aqueles que não podem se autodeterminar para o setor da incapacidade relativa. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana não se compatibiliza com uma abstrata homogeneização de seres humanos em uma categoria despersonalizada de absolutamente incapazes, que por sua própria conformação é infensa a qualquer avaliação concreta acerca do estatuto que regulará a condução da vida da pessoa deficiente após a curatela. A incapacidade absoluta, por essência, é incompatível com a regra da proporcionalidade. Evidentemente, a reforma legislativa não alterará o cenário fático em que milhões de pessoas continuarão a viver alheios à realidade, necessariamente substituídos pelo curador na interação com o mundo. Portanto, a representação de incapazes prossegue incólume, pois não se trata de uma categoria apriorística, cuida-se de uma técnica de substituição na exteriorização de vontade, que pode perfeitamente migrar da incapacidade absoluta para a relativa, inserindo-se em seu plano de eficácia. Vale dizer, conforme a concretude do caso, o projeto terapêutico individual se desdobrará em 3 possibilidades: a) o curador será um representante para todos os atos; b) o curador será um representante para alguns atos e assistente para outros; c) o curador será sempre um assistente. E onde se encontra o salto qualitativo de tal formulação tripartida? Abolida a categoria dos absolutamente incapazes, já não haverá mais espaço para o recurso a fórmulas genéricas e pronunciamentos judiciais estereotipados. Uma forte carga argumentativa justificará qualquer sentença que determine a máxima intervenção sobre a autonomia devido ao apelo à técnica da representação.

Comentários: de acordo com o caso, haverá 3 possibilidades: a) o curador será um representante para todos os atos; b) o curador será um representante para alguns atos e assistente para outros; c) o curador será sempre um assistente. O Juiz deverá analisar o caso concreto detidamente e esclarecer qual será a hipótese, dentre as três possíveis.

8) Tendo em vista que os artigos 4º, I e 1.767, I, do CC aludem a incapacidade relativa e consequente curatela das pessoas que “não podem exprimir a sua vontade”, como ficam aquelas pessoas que sofrem de restrições na autodeterminação, mas ainda são aptas a se fazer compreender?
 

Quando a pessoa deficiente possua limitações no exercício do autogoverno, mas preserve de forma precária a aptidão de se expressar e de se fazer compreender, o caminho não será o binômio incapacidade relativa/curatela. A Lei 13.146/15 criou a Tomada de Decisão Apoiada (art. 1.783-A, CC) como tertium genus protetivo em prol da assistência da pessoa deficiente que preservará a capacidade civil. Esse novo modelo jurídico se coloca de forma intermediária entre os extremos das pessoas ditas normais – nos aspectos físico, sensorial e psíquico – e aquelas pessoas com deficiência qualificada pela impossibilidade de expressão que serão curateladas e se converterão em relativamente incapazes. A partir de Janeiro de 2016 haverá uma gradação tripartite de intervenção na autonomia: a) pessoas sem deficiência terão capacidade plena; b) pessoas com deficiência se servirão da tomada de decisão apoiada a fim de que exerçam a sua capacidade de exercício em condição de igualdade com os demais; c) pessoas com deficiência qualificada pela curatela em razão da impossibilidade de autogoverno serão submetidas a um regime especial que levará em conta as crenças e vicissitudes do sujeito. A incapacidade relativa será materializada alternativamente pelas técnicas da representação e assistência. Em outros termos, as pessoas com deficiência que pelo CC/02 eram considerados absolutamente incapazes em uma terminologia reducionista, tornam-se relativamente incapazes a partir da vigência da Lei n. 13.146/15; aquelas pessoas com deficiência que eram relativamente incapazes por “discernimento reduzido” (art. 4, II, do CC/02) serão plenamente capazes e direcionadas ao novo modelo da Tomada de Decisão Apoiada.

Comentários: a partir de Janeiro de 2016, haverá três possibilidades de intervenção na autonomia: a) pessoas sem deficiência terão capacidade plena; b) pessoas com deficiência se servirão da tomada de decisão apoiada; c) pessoas com deficiência qualificada pela curatela em razão da impossibilidade de autogoverno serão submetidas a um regime especial conforme o caso concreto. Assim, se as pessoas sofrem de restrições na autodeterminação, mas são aptas a se fazer compreender, não haverá curatela, mas sim Tomada de Decisão Apoiada.

 

9) Apesar dos claros avanços, a Lei n. 13.146/15 provoca abalos sistêmicos?
 

Evidente que nem tudo são flores. A desconexão entre a curatela e a incapacidade absoluta provoca abalos sistêmicos que merecem exame pormenorizado. A partir da vigência da Lei nº 13.146/15, mesmo que a pessoa deficiente esteja sob curatela, a prescrição e a decadência correrão contra ela. A teor dos artigos 198, I e 208 do CC, a prescrição e a decadência apenas não fluem contra os absolutamente incapazes (que serão apenas os menores de 16 anos). Evidentemente, haverá prejuízo para os que agora serão considerados como relativamente incapazes. Ademais, os atos praticados pelo interditado sem a presença do curador serão submetidos à sanção da anulabilidade (art. 171, I, CC) e não mais à nulidade (art. 166, I, CC), com todas as consequências em termos de legitimidade e prazo para a invalidação do ato prejudicial.

Comentários: há algumas questões preocupantes, pois diminuem a proteção do deficiente sem autodeterminação. Mesmo que a pessoa deficiente esteja sob curatela, a prescrição e a decadência correrão contra ela, pois não mais será absolutamente incapaz. Os atos praticados pelo interditado sem a presença do curador serão anuláveis e não mais nulos.

 

10) O que há de inovador no novo modelo jurídico da Tomada de Decisão Apoiada?
 

O art. 116 da Lei n. 13.146/15, cria um tertium genus em matéria de modelos protetivos de pessoas em situação de vulnerabilidade. Além dos tradicionais institutos da tutela e curatela surge a Tomada de Decisão Apoiada. O Título IV do Livro IV da Parte Especial do Código Civil, passa a vigorar acrescido do art. 1.783-A, consubstanciando 11 parágrafos. Essa interessante figura já era aguardada. Ela concretizará o art. 12.3 da CDPD nos seguintes termos: “Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal”. Tutela e curatela são instituições protetivas da pessoa e dos bens dos que detêm limitada capacidade de agir, evitando os riscos que essa carência possa impor ao exercício das situações jurídicas por parte de indivíduos juridicamente vulneráveis. Contudo, por mais que o legislador paulatinamente procure reformar esses tradicionais mecanismos de substituição – de forma a adequá-los ao modelo personalista do direito civil constitucional -, pela própria estrutura, tutela e curatela são medidas prioritariamente funcionalizadas ao campo estritamente patrimonial. A Tomada de decisão apoiada é um modelo jurídico que se aparta dos institutos protetivos clássicos na estrutura e na função. O novo art. 1.783-A veicula a sua essência: “A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”. Na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato. Mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil. Assim, esse modelo beneficiará enormemente pessoas deficientes com impossibilidade física ou sensorial (v.g. tetraplégicos, obesos mórbidos, cegos, sequelados de AVC e portadores de outras enfermidades que as privem da deambulação para a prática de negócios e atos jurídicos de cunho econômico,) e pessoas com deficiência psíquica ou intelectiva que não tenham impedimento, mas possuam limitações em expressar a sua vontade. Eles não serão interditados ou incapacitados, pois a tomada de decisão apoiada veio para promover a autonomia e não para cerceá-la.

Comentários: a tutela e curatela são medidas que visam ao campo patrimonial. Já a tomada de decisão apoiada é um modelo jurídico diferente. Trata-se de processo por meio do qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil. Na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato, ainda que coadjuvado pelos apoiadores. A pessoa com deficiência terá plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar alguns atos da vida civil. O objetivo é atender pessoas deficientes com impossibilidade física ou sensorial que não tenham impedimento, mas possuam limitações em expressar a sua vontade. Interessante instrumento para escolher essas pessoas de confiança do deficiente é a DAV (Declaração Antecipada de Vontade ou Diretrizes Antecipadas de Vontade, também conhecida por “Testamento Vital”, que pode ser feita em Cartório de Notas, perante um Tabelião). Em Minas Gerais, a DAV está disciplinada pelo Código de Normas do Extrajudicial, Provimento nº 260/CGJ-MG.

11) Mirando o futuro, quais são os prognósticos para a plena efetividade do Estatuto da Pessoa com Deficiência?
 

Em síntese, aprenderemos a conviver com diferentes estatutos de proteção, à medida em que em estejam em jogo situações jurídicas de pessoas deficientes ou pessoas com deficiência qualificada pela curatela. Naturalmente, a ofensa aos direitos fundamentais da pessoa curatelada não será singelamente eliminada pelo câmbio legislativo da incapacidade absoluta para a incapacidade relativa se o giro linguístico não for acompanhado de uma atualização procedimental, hábil a substancializar a fruição de direitos fundamentais pela pessoa curatelada, preservando ao máximo a sua autonomia. Como bem alude o art. 12, nº 4, da CDPD, “Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial”. Na mesma toada, preceitua o § 2º do art. 85 da Lei nº 13.146/15: “A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado”. Enfim, a par de rótulos, o fundamental é que a norma processual estruture o processo de curatela com acato à sua excepcionalidade e a aplicação do critério da proporcionalidade em sua configuração concreta. A propósito, o CPC/15 (Artigos 747 a 758) caminhou eficazmente nesse sentido.

Comentários: o objetivo da lei é respeitar a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade, orientando o Juiz a aplicar a melhor medida no caso concreto, conforme a deficiência existente, respeitando os direitos, a vontade e as preferências da pessoa.
 

2- O notário e o registrador e a aplicação do estatuto da pessoa com deficiência
 

O notário e o registrador são aqueles a quem primeiro são apresentadas as alterações legislativas, muito antes da provocação feita ao Poder Judiciário, eles terão que se manifestar no caso concreto, razão pela qual não podem se furtar a interpretar a lei.
 

No que diz respeito à atividade notarial e registral, o art. 83 do Estatuto esclarece que:
Os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade.

 

Para Gustavo Casagrande Canheu, considerando o acima exposto e, ainda, que a lei em questão revogou os incisos dos arts. 3º e 4º do Código Civil, que classificavam como absoluta e relativamente incapazes aqueles que por enfermidade ou deficiência mental não tivessem o necessário discernimento, ou o tivessem de forma reduzida, cabe aos Tabeliães e Registradores reconhecer, a priori, como legalmente capazes para a prática de atos perante suas delegações qualquer pessoa com deficiência, seja ela qual for. (CANHEU, 2015)

Como hoje já é feito, devem ser disponibilizados meios para que as pessoas com deficiência possam praticar os atos da vida civil sem discriminação ou exposição vexatória.

Obviamente a incapacidade é a exceção e a capacidade a regra, mas a alteração legislativa não pode obstar que o Notário e o Registrador atuem de forma a dar segurança jurídica aos atos em que intervierem. Não será possível que, havendo dúvida sobre a autodeterminação, ainda assim o Notário ou Registrador, na ausência de curador fixado em sentença, simplesmente ignore a impossibilidade de manifestação de vontade ou a completa alienação mental do deficiente. Caberá ao referido agente público exigir os documentos que entender necessários para formar a sua convicção sobre lucidez da pessoa deficiente, podendo requerer apresentação de atestados médicos e, permanecendo a dúvida, poderá levar a questão ao Juiz competente para Registros Públicos para decisão. Nesse ponto, apesar do conteúdo da nova lei, NADA MUDOU. A Lei nº 8.935/94, específica para Notários e Registradores, continua, como antes, exigindo-lhes que garantam a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

3- Conclusão
 

Foi publicada em 07 de julho de 2015 a Lei 13.146/2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência, com vacatio legis de 180 dias.
 

O Estatuto apresenta diversas garantias para os portadores de deficiência de todos os tipos, com reflexos nas mais diversas áreas do Direito.
 

Havendo capacidade limitada para a prática de certos atos, ainda haverá possibilidade de curatela, mas sem a condição de absolutamente incapaz e com expressa indicação pelo Juiz dos atos que não pode o curatelado praticar sem a assistência do curador. Poderá também haver pessoas com deficiência que se servirão da tomada de decisão apoiada, escolhendo duas pessoas em que confie para que a ajudem nos atos jurídicos em que não consiga manifestar de forma plena a sua vontade.
 

A curatela passa a ter o caráter de medida extraordinária, que será determinada pelo Juiz somente na medida em que for necessária. A curatela deverá ser proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
 

A sentença obrigatoriamente deverá considerar as circunstâncias de cada caso concreto, afastando a simples decretação da incapacidade absoluta com a limitação integral da capacidade do deficiente, aumentando a necessidade de fundamentação da decisão, conforme houver a limitação da capacidade do sujeito para a prática de certos atos.
 

A lei também determinou que a curatela afeta apenas os aspectos patrimoniais, mantendo o portador de transtorno mental o controle sobre os aspectos existenciais da sua vida, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, expressamente apontados no artigo 85, parágrafo 1º, do Estatuto.
 

Poderá haver difícil situação para os Registradores Civis das Pessoas Naturais: como avaliar se a pessoa tem ou não capacidade para decidir sobre o casamento? Pode o Registrador exigir laudos médicos e, persistindo a dúvida, deverá submeter a questão para decisão do Juiz competente para Registros Públicos, no próprio processo de habilitação para casamento.
 

A curatela deverá ser concedida pelo Juiz em benefício do portador de deficiência, sem que lhe sejam impostas restrições indevidas.
Inseriu-se também no sistema do Código Civil um novo modelo alternativo: o da tomada de decisão apoiada.

 

Por iniciativa da pessoa com deficiência, são nomeadas pelo menos duas pessoas idôneas "com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade." É modelo que similar à ideia da assistência, mas nesse caso, a pessoa que toma a decisão apoiada não é incapaz. O próprio deficiente pode constituir pessoas, com fundamento na confiança que neles tem, para lhe auxiliar nos atos da vida.
 

Haverá ainda diversas outras consequências: o deficiente poderá servir como testemunha e poderá se casar sem necessidade de autorização de curador. Já houve, inclusive, solicitação de habilitação para casamento por uma interditada, acompanhada por sua curadora, no Cartório do Barreiro, onde a ora narradora atua como Oficial de Registro. Na situação concreta apresentada, a interditada manifestou claramente sua vontade de se casar, não havendo alienação mental, mas apenas uma dificuldade para lidar com dinheiro ou negociações em geral, como reconhecido pela própria interditada e pela curadora. Ainda assim, tendo em vista a dúvida sobre o procedimento e considerando que o Estatuto do Deficiente ainda não está em vigor, foi encaminhada consulta à Juíza da Vara de Registros Públicos para manifestação sobre a possibilidade de seguimento do processo. Em breve outro artigo examinará profundamente a questão.
 

Para o tabelião de Notas, também haverá necessidade de maior cautela, posto que, nas situações negociais em geral, haverá o afastamento de muitas causas de invalidade, mas a necessidade de o tabelião proteger a legalidade e dar tratamento isonômico permanece.
 

Como ficará a situação das pessoas já sujeitas ao regime de curatela, sobretudo aquelas já consideradas absolutamente incapazes? Será preciso rever todas as sentenças? Os curadores já constituídos continuarão aptos a atuar na nova realidade jurídica?
 

Muitas são as dúvidas e variados os desafios, mas o objetivo do Direito Internacional na proteção dos direitos humanos, que agora se observa na Lei nº 13.146/2015, que regulamentou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, é aplicar a proporcionalidade para garantir cada vez mais a dignidade da pessoa humana, pois ser diferente não significa ser absolutamente incapaz.

[1] O art. 5º, §3º, da Constituição Federal, atribuiu ao Congresso Nacional a prerrogativa de utilizar o quórum de votação próprio das emendas constitucionais para o tratado ou convenção com conteúdo de direitos humanos: dois turnos, por três quintos dos membros, em cada Casa do Congresso Nacional. Com isso, o tratado ou convenção passará a ser equivalente às emendas constitucionais, ou seja, passará a fazer parte da Constituição brasileira.

[2] Art. 5º […] § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004

[3] Vide informação das NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: <http://nacoesunidas.org/comite-da-onu-sobre-direitos-das-pessoas-com-deficiencia-avalia-o-brasil-nos-dias-25-e-26-de-agosto/>. Acesso em 19 nov. 2015.

 

 

Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro. É Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e Diretora do Colégio Notarial do Brasil, Seção Minas Gerais – CNB/MG. É representante do Brasil na União Internacional do Notariado Latino – UINL.

 


Fonte: Colégio Notarial do Brasil