MARCOS DE CASTRO
Noel Rosa assinava o nome com um nítido trema sobre o "e" do primeiro nome. Está lá o trema, a chamar a atenção, na assinatura ("Noël de Medeiros Rosa") reproduzida na abertura da excepcional biografia, mesmo para padrões internacionais, de João Máximo e Carlos Didier (Linha Gráfica Editora e Editora UnB, Brasília, 1990). Isso quer dizer que o pai deu-lhe o nome francês – e o fez por amor ao idioma que então dominava a cultura brasileira, pois em português a palavra Noel não tinha trema naquele tempo (1910), como nunca tivera na história da língua "em que Camões chorou no exílio amargo", nem nunca teria.
O pai tinha, como tem, o direito de dar o nome que quiser ao filho – e é tão comum o uso de nomes estrangeiros no Brasil! Para ficarmos só no exemplo de copiar o francês, topamos a cada momento, mesmo, ou principalmente, entre filhos da gente mais humilde, com um Charles aqui, um Jean ali, um Jacques mais adiante (não poucas vezes sem o "c" medial), quando seria tão mais simples batizar os meninos como Carlos, João, Tiago.
O que se quer dizer é que cada um faz o que quer com nomes próprios de pessoa no Brasil. O mesmo não se dá em Portugal onde pau é pau e pedra é pedra em matéria de nomes, ninguém batiza o filho com metade do nome do pai mais metade do nome da mãe, coisa tão comum nas terras em que a esquadra de Cabral aportou em 1500. No Brasil, os pais se entregam com frequência surpreendente a esse estranho exercício, que parece nascer de uma tendência de combate à xenofobia (embora não seja nada disso).
Nos países civilizados, em que há uma lista obrigatória e restritiva nos cartórios (o que leva, na França, por exemplo, os pais a recorrerem exaustivamente ao nome duplo, tipo Jean-Charles,Jean-Pierre, etc) é a tradição que funciona como lei suprema. Em Portugal, pelo que se vê, ninguém pensaria em registrar o filho como Oceano Atlântico Linhares, funcionário que no meado do século passado ficou famoso por aqui, porque, carregando esse nome, trabalhava no então Departamento Nacional de Obras Contra a Seca. Ou como Um Dois Três de Oliveira Quatro, de que até Deus dúvida – mas nunca se deve duvidar daquilo que a cultura de um país incorpora como verdade. Ou ainda do inexcedível Prodamor Conjugol de Marimélia, que pode parecer brincadeira, mas há seguramente registro do caso num jornal de Uberaba, Triângulo Mineiro, em 1934, num recorte que andou por muito tempo entre meus papéis (infelizmente quem recortou a notícia, ou artigo, não anotou o título nem a data exata da publicação). O pai espirituoso queria dizer com isso que o filho era o Produto do Amor Conjugal de Mário e Amélia. Quanto ao "Conjugol", nem ele nem ninguém sabia explicar.
O registro civil de uma criança é uma história muito particular entre um pai emocionado (às vezes também destrambelhado) e um funcionário de cartório. O pior é quando as coisas vão além das histórias pessoais. É o caso do nosso Teatro Municipal, que envolve uma cidade, as pessoas que amam essa cidade – e que o país todo tem de lamentar. Há uma boa meia dúzia de anos (pouco mais, pouco menos) alguém inventou que o nosso imponente teatro, patrimônio do Brasil, em matéria de nome deveria regredir um século. E, nos anúncios de espetáculos nos jornais, as óperas mais tradicionais, as cerimônias mais importantes, passaram a usar a grafia "Theatro Municipal". Felizmente os jornais, em sua parte editorial, não aderiram à falta de senso da direção do teatro. E ficamos nós, cariocas, como vítimas maiores da brincadeira, pois estamos diante de uma brincadeira típica da falta do que fazer – e do pior mau gosto.
Dê o leitor um pulinho a Niterói e encontrará lá, direitinho, seu belo Teatro Municipal, exibindo linhas sóbrias e a simplicidade de seu saber ortográfico: "Teatro Municipal". O mesmo se dá se formos a Petrópolis. Lá, ou em qualquer outra cidade de nosso estado ou do restante do país, os responsáveis pelos teatros públicos sabem escrever. Passamos nós, cariocas, por analfabetos – com inteira justiça se é seu teatro mais significativo que se toma como parâmetro.
O Teatro Municipal do Rio incorpora assim à sua curiosa história o capítulo mais desastrado, entrando como vilão na peça de mocinho e bandido que passou a exibir (o bandido no caso é o próprio teatro, atirando contra o povo). Digo curiosa porque o sofrido teatro já foi, em outras épocas, palco dos mais estrondosos bailes de carnaval, que com rigorosa certeza em nada contribuíram para aumentar-lhe a glória. Deles, tudo que sobrou foi um tanto de bebedeira, um tanto de escândalos – e o lucro certo das revistas ilustradas naquelas semanas. Nos dias que correm, esse "h" excrescente acrescenta à história do teatro um dado que não chega nem a ser curioso porque não passa de uma bobagem.
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Um dueto: Oceano Atlântico Linhares e Prodamor Conjugol de Marimélia
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Imaginemos a Biblioteca Nacional, ali ao lado, passando a grafar "Bibliotheca", a Casa de Rui Barbosa voltando a ser de "Ruy" Barbosa, imaginemos todas as nossas instituições de alta linha (como a cabrocha Rosinha do samba dolente de Noel) regredindo um século para voltar ao período da balbúrdia ortográfica. Mas essas entidades são casas sérias, coisa que nosso velho teatro deixou de ser ao adotar esse "h" que levava sem dúvida a intenção de ser engraçadinho, mas só veio criar problemas – como criou para o menino que outro dia me perguntou se teatro se escrevia mesmo com "h". Certamente o autor da proeza achava que ao ressuscitar a letra estava dando um ar de erudição ao nome do teatro: recuar no tempo parece sempre coisa de sábio. Um arcaísmo, no caso um falso arcaísmo, costuma deslumbrar a "plebe rude". Um pavão gosta de andar com o garbo das penas do rabo em forma de leque, bem abertas. Parece saber que os deslumbrados gostam de vê-lo desfilar assim, uma espécie de rainha de bateria. Nosso Teatro Municipal – que não é municipal, como se sabe, mas estadual – dá, hoje, aos que topam com seus anúncios nos jornais, a impressão de que é um pavão, quer dizer, um bobo desfilando, a mostrar um brilho que é pura falsidade.
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MARCOS DE CASTRO é jornalista.
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Fonte: Jornal O Globo