Entenda a decisão do STF que garante herança a catarinense criada e registrada por outro homem

Aos 16 anos, uma moradora de Florianópolis, descobriu que seu pai biológico não era o que havia lhe registrado, criado e amado por toda a vida. Foi então que a jovem, fruto de um caso extra-conjugal, reuniu-se com a família de origem humilde, solicitou exames de DNA e, após três testes — um negativo e dois positivos —, era comprovada a paternidade biológica de outro homem, dessa vez um empresário conhecido da região. Com 19 anos, ela entrou na Justiça para pedir a correção no registro civil, o pagamento de pensão alimentícia e a garantia de acesso à herança.

 

Depois de 13 anos de tramitação, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) na última quarta-feira, devido ao pai biológico recorrer de decisões desfavoráveis a ele no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, alegando que a fixação de verba alimentar seria de responsabilidade do pai socioafetivo.

 

Formalizada no dia seguinte, a decisão vencida em Brasília em um placar de 8 a 2 cria jurisprudência polêmica em torno do Direito da Família: pais biológicos devem garantir o pagamento de pensão e o direito à herança aos seus filhos, mesmo que eles tenham sido criados por outros homens.

 

A sentença deve gerar jurisprudência e estimular decisões parecidas em processos similares. O caso corre em segredo de Justiça e, portanto, os nomes não foram divulgados pelo STF. A reportagem teve acesso aos advogados, que informaram que as partes não vão se pronunciar sobre a decisão.

 

A mulher catarinense, já com 33 anos, terá direito à herança do pai biológico e a uma parcela da pensão que estava bloqueada pela Justiça quando ela havia ajuizado a ação e ainda estava cursando a faculdade – e, por isso, era considerada dependente do progenitor. Segundo o advogado que a defende, Eduardo Mello e Souza, ela poderá alterar o nome se quiser, mas esse não é o principal objetivo.

 

— Não importa o sobrenome que ela adotar, porque não é questão de nome ou sobrenome. É de responsabilidade patrimonial. Minha cliente passou muitas dificuldades ao longo da vida, principalmente quando moveu a ação e pagava a mensalidade da faculdade com muito custo.

 

Apesar de pai e filha não terem se aproximado afetivamente ao longo do processo, Mello e Souza celebra a vitória sob dois pontos de vista: jurídico e antropológico:

 

— Sempre haverá a necessidade de o pai biológico suprir a necessidade do filho e isso agora ficou garantido. E durante muitos anos, as pessoas ricas simplesmente tinham filhos e não assumiam as responsabilidades. Agora essa prática que ressuscitava Casa-Grande & Senzala [livro do sociólogo Gilberto Freyre] é enterrada de vez — comemora.

 

Já a defesa do pai biológico, representada pelo advogado Rodrigo Fernandes Pereira, brigava pela manutenção da procedência da ação movida pela filha apenas para fins genéticos, sem alteração do registro civil, reflexo patrimonial ou sucessório.

 

— Porque ela foi gerada dentro de um casamento já estabelecido. Jamais houve abandono afetivo. E a paternidade socioafetiva tem previsão constitucional. Em muitos outros casos, ela [paternidade socioafetiva] prevaleceu. A questão dela [filha] é o patrimônio. Meu cliente é muito rico — justifica o agente de Direito, que dirige o Instituto Brasileiro de Direito da Família.

 

Tipos de paternidade

 

Com a decisão, a filha pode incorporar o nome do pai biológico e excluir a do pai socioafetivo. Segundo o advogado Ricardo Calderón, que fez a sustentação oral como "amigo da corte" no STF na quinta-feira e integra a Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito da Família, os modelos de parentalidade devem existir em igual grau.

 

— Não deve haver prevalência de nenhuma sobre a outra, isso falando em abstrato. Ambas modalidades devem existir no nosso sistema jurídico em igual grau hierárquico enquanto tese genérica. Cada caso concreto vai indicar qual é a melhor solução — explica o jurista, que ainda defende que o STF esclareça no acórdão a diferença entre o papel de genitor e o papel de pai.

 

O relator do processo, Luiz Fux, também defende o reconhecimento da dupla parentalidade. O ministro do STF apresentou a tese de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não no registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica.

 

— Se o conceito de família não pode ser reduzido a modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as diversas formas de filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar.

 

— Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos – prosseguiu.

 

 

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Fonte: Diário Catarinense