Jurisprudência mineira – Apelação cível – Nulidade do ato jurídico – Incapacidade absoluta – Declaração de interdição

APELAÇÃO CÍVEL – NULIDADE DO ATO JURÍDICO – INCAPACIDADE ABSOLUTA – DECLARAÇÃO DE INTERDIÇÃO


– São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos.


– Demonstrada a contemporaneidade do ato com a doença mental geradora da incapacidade, pode ser declarada a nulidade do ato jurídico.


– O ato nulo não convalesce com o tempo.


Recurso não provido.


Apelação Cível nº 1.0083.12.000756-8/001 – Comarca de Borda da Mata – Apelante: C.M.M.F. – Apelado: F.S.F. representado pela curadora M.L.F.S. – Relator: Des. Anacleto Rodrigues (Juiz de Direito convocado)


ACÓRDÃO


Vistos etc., acorda, em Turma, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.


Belo Horizonte, 24 de junho de 2015. – Anacleto Rodrigues – Relator.


NOTAS TAQUIGRÁFICAS


DES. ANACLETO RODRIGUES (Juiz de Direito convocado) – Trata-se de recurso de apelação interposto por C.M.M.F., visando à reforma da r. sentença de f. 137/139-v., proferida pelo MM. Juiz de Direito da Vara Única da Comarca de Borda da Mata-MG, que, nos autos da ação anulatória de negócio jurídico ajuizada por F.S.F. em face da apelante, julgou procedentes os pedidos para declarar a nulidade da compra e venda objeto da escritura pública constante do livro nº 136, à f. 104, do 1º Ofício de Notas daquela Comarca.


Em suas razões recursais (f. 140/154), a apelante sustenta que o negócio jurídico declarado nulo fora firmado quatro anos antes da interdição do apelado, não podendo esta declaração, mediante efeito ex tunc, macular pacto livremente ajustado pelos litigantes.


Acrescenta que a escritura anulada teve por objetivo a consolidação de outra avença, figurando como beneficiários o recorrido e sua família.


Ao final, pede o provimento do recurso, a fim de afastar a incapacidade do recorrido à época do negócio e a simulação reconhecidas por equívoco no bojo da sentença. Em caráter subsidiário, pede a restituição do valor solvido à época da negociação.


Preparo realizado à f. 158.


À f. 159, restou recebido o recurso, em ambos os efeitos, e determinada a intimação do apelado.


Intimado, o apelado apresentou contrarrazões (f. 160/162), sustentando que o pedido de restituição não fora formulado em primeira instância.


Instado a se manifestar, o Ministério Público exarou parecer, manifestando-se pela manutenção da r. sentença hostilizada.


Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.


F.S.F., representado por sua genitora M.L.F.S., ajuizou a presente ação anulatória, pretendendo, sob o fundamento de sua incapacidade absoluta e de simulação, a anulação do negócio jurídico firmado com a ré.


É cediço que, nos termos do art. 104 do Código Civil, a validade do negócio jurídico requer agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.


Por sua vez, os arts. 3º e 4º do Código Civil estabelecem como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade; e, relativamente incapazes, os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e os pródigos.


Na espécie, o apelado F.S.F., na data de 14.01.2011, fora declarado absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil, nos termos do art. 3º, II, do Código Civil (os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos).


Consta, da r. sentença, ser o interditado "portador de anomalia psíquica, inclusive ficou internado no Hospital de Toxicômanos Padre Wilson Vale da Costa, em Juiz de Fora, conforme documento de f. 13, incapaz de gerir sua pessoa e seus bens, conforme atestados de f. 10/12, sendo, via de consequência, procedente o pedido de sua interdição […]" (f. 26, apenso).


O negócio que se pretende anular fora firmado no ano de 2007, ou seja, cerca de quatro anos antes da declaração de sua incapacidade.


Logo, deve-se perquirir se a sentença proferida em ação de interdição possui cunho constitutivo ou declaratório, produzindo, consequentemente, efeitos ex tunc ou ex nunc.


"Não há, realmente, no Direito Positivo pátrio norma expressa que dispõe sobre a validade, ou não, dos negócios realizados pelo incapaz antes do decreto de interdição pela autoridade judicial.


No Direito estrangeiro, o art. 503 do Código Civil francês prevê: "Les actes antérieurs pourront être annulés si la cause qui a déterminé l'ouverture de la tutelle existrait notoirement à l'époque ou ils ont été faits" ("Os atos anteriores à interdição poderão ser anulados se a causa da interdição existia anteriormente à época em que tais fatos foram praticados"). Tal solução francesa nos parece bastante ponderada, uma vez que, se a incapacidade ao tempo do negócio jurídico poderia ser percebida facilmente pelo homem mediano (por exemplo, pelos elementos decorrentes do preço ou forma de pagamento em uma compra e venda de imóvel), não é razoável admitir a validade do negócio, ainda mais se a sentença do juiz não constitui a incapacidade, que preexiste, mas sim apenas a declara oficialmente.


É bom lembrar ainda que, declarada judicialmente a incapacidade, não são considerados válidos os atos praticados pelo incapaz mesmo nos intervalos de perfeita lucidez. Essa observação é necessária, considerando a existência de graves doenças mentais que se manifestam apenas ciclicamente.


Por fim, frise-se que a senilidade não é causa de restrição da capacidade, ressalvada a hipótese de a senectude gerar um estado patológico, a exemplo da arteriosclerose” (GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 14. ed. São Paulo: Saraiva, p. 153).


Cumpre, outrossim, trazer as lições de Carlos Roberto Gonçalves:


"Decretada a interdição, será nomeado curador ao interdito, sendo a sentença de natureza declaratória de uma situação ou estado anterior. Sob a ótica processual, alguns autores, no entanto, entendem que ela é constitutiva, porque os seus efeitos são ex nunc, verificando-se desde logo, embora sujeita à apelação (CPC, art. 1.184). Sustentam os aludidos autores que a declaração da incapacidade absoluta é feita na fundamentação da sentença e que a criação de uma situação nova, que sujeita o interdito à curatela, dá-se na parte dispositiva do decisum. Todavia, sob o aspecto do reconhecimento de uma situação de fato – a insanidade mental como causa da interdição – tem natureza declaratória, uma vez que, mesmo nas sentenças constitutivas, há uma declaração de certeza do direito preexistente, das condições necessárias e determinadas em lei para se criar nova relação, ou alterar a relação existente. Assiste razão, portanto, a Maria Helena Diniz quando afirma que a sentença de interdição tem natureza mista, sendo, concomitantemente, constitutiva e declaratória: declaratória no sentido de 'declarar a incapacidade de que o interditando é portador' e 'ao mesmo tempo constitutiva de uma nova situação jurídica quanto à capacidade da pessoa que, então, será considerada legalmente interditada" (Direito civil brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, p. 114/115)”.


Debruçando-me sobre o tema, filio-me à corrente que defende a possibilidade de se invalidar o ato negocial praticado anteriormente à sentença de interdição, mas desde que comprovada, em cada caso, a existência da insanidade para o ato praticado.


Nesse sentido:


"São nulos os atos praticados pelo alienado anteriormente à interdição, desde que demonstrada a contemporaneidade do ato com a doença mental geradora da incapacidade" (STF, RE 82.311, Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. em 01.04.1977, RTJ 82/213). 


"Para resguardo da boa-fé de terceiros e segurança do comércio jurídico, o reconhecimento da nulidade dos atos praticados anteriormente à sentença de interdição reclama prova inequívoca, robusta e convincente da incapacidade do contratante" (STJ, REsp 9.077/RS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, 4ª Turma, 25.02.1992, DJU de 30.03.92)”. 


Outro não é o entendimento desta eg. Câmara:


"Apelação cível. Ação declaratória c/c repetição do indébito. Contrato de financiamento de veículo. Agente absolutamente incapaz. Nulidade absoluta. Retorno das partes ao status quo ante. Restituição do veículo. Ônus do réu. Não comprovação. – A incapacidade é fato que precede a interdição, gerando efeitos independentemente de seu reconhecimento judicial. No entanto, é necessário que haja prova de que a incapacidade é anterior à interdição e que esta incapacidade seja suficiente para tornar a pessoa irresponsável por seus atos. O negócio jurídico firmado por agente incapaz é nulo. O retorno das partes ao status quo ante é efeito imediato da sentença anulatória, conforme disposição do art. 182 do CC. – É ônus do réu a prova da existência de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor. – Não demonstrando o réu que entregou o veículo ao incapaz, ônus que lhe incumbia, não há que se falar em devolução do bem. Recurso improvido” (TJMG – Apelação Cível 1.0024.06.304237- 8/002, Relator Des. Domingos Coelho, j. em 28.05.2014, p. da súmula em 02.06.2014).


No caso dos autos, em que pese a prolação da r. sentença após cerca de quatro anos da celebração do contrato, a prova nos autos é contundente no sentido de que o autor sempre fora incapaz de gerir sua vida pessoal e seus bens, sendo, portanto, nulos os atos por ele praticados.


O parecer do IRMP, titular da Comarca de Borda da Mata há mais de dezesseis anos, fora bastante esclarecedor, trazendo aos autos provas e argumentos bastante elucidativos. Confira-se:


"[…] Os surtos psicóticos de F.S.F. resultaram em violentos episódios contra os pais e o levaram cautelarmente à prisão. Após diversas internações psiquiátricas, a agressividade cessou e foi possível o retorno ao livramento condicional até o fim da execução, que ocorreu em 11.08.2011 […]


F.S. jamais participou de sociedade comercial alguma, jamais pretendeu negociar imóvel de sua propriedade, jamais recebeu qualquer centavo do empreendimento, bem como jamais aquiesceu ao cancelamento de cláusula de inalienabilidade do imóvel que lhe foi doado por seus pais" (f. 131).


Assim sendo, diante da notória incapacidade do apelado à época dos fatos, não há dúvida acerca da necessidade de declarar a nulidade do ato de compra e venda.


Por fim, insta registrar a ocorrência de ato simulado. 


Nos termos do art. 167 do Código Civil, é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma, sendo que haverá simulação nos negócios jurídicos quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; os instrumentos particulares forem pré-datados, ou pós-datados. 


Sobre o tema, Caio Mário da Silva Pereira ensina que:


"Não há na simulação um vício do consentimento, porque o querer do agente tem em mira, efetivamente, o resultado que a declaração procura realizar ou conseguir. Mas há um defeito do ato, ou um daqueles que a doutrina apelida de vícios sociais, positivado na conformidade entre a declaração de vontade e a ordem legal, em relação ao resultado daquela, ou em razão da técnica de sua realização. Consiste a simulação em celebrar-se um ato, que tem aparência normal, mas que, na verdade, não visa ao efeito que juridicamente devia produzir" (Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, p. 335).


Nesse contexto, ensina Pablo Stolze que "na simulação celebra-se um negócio jurídico que tem aparência normal, mas que, na verdade, não pretende atingir o efeito que juridicamente devia produzir. É um defeito que não vicia a vontade do declarante, uma vez que este mancomuna-se de livre vontade com o declaratório para atingir fins espúrios, em detrimento da lei ou da própria sociedade. Trata-se, pois, de um vício social, que, mais do que qualquer outro defeito, revela frieza de ânimo e pouco respeito ao ordenamento jurídico" (Novo curso de direito civil. 2014, v. 1, Parte Geral, p. 316).


Acrescentam-se os ensinamentos de Flávio Tartuce:


"[…] na simulação há um desacordo entre a vontade declarada ou manifestada e a vontade interna. Em suma, há uma discrepância entre a vontade e a declaração; entre a essência e a aparência. A simulação pode ser alegada por terceiros que não fazem parte do negócio, mas também por uma parte contra a outra, conforme reconhece o Enunciado nº 294 CJF/STJ, aprovado na IV Jornada de Direito Civil. Assim, fica superada a regra que constava do art. 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. A regra não mais prevalece, pois a simulação, em qualquer modalidade, passou a gerar a nulidade do negócio jurídico, sendo questão de ordem pública” (Manual do direito civil, ano 2014, p. 198/199).


No caso dos autos, os depoimentos das testemunhas ouvidas foram bastante esclarecedores no sentido da simulação do ato. Senão vejamos:


"[…] que o negócio real foi o seguinte: já há 10 anos o depoente alugava o imóvel onde explorava um posto de gasolina e restaurante; que F.S., irmão do autor, estava desempregado; que os pais do autor e F. fizeram ao depoente proposta, para que 50% do fundo de comércio e benfeitorias coubessem a F.S., que passaria a explorar o fundo de comércio em sociedade com o depoente; […] que considerando o negócio real feito não houve qualquer pagamento quanto da escritura de f. 8" (f. 110/111, sic). Logo, através do depoimento do principal envolvido na negociação, a outra conclusão não se pode chegar a não ser a nulidade do ato por vício de simulação.


Como bem consignado pelo MM. Juiz a quo, "em mais um dos muitos negócios confusos, obscuros e informais do Sr. M.M., nesta Comarca, o mesmo pediu à sua sobrinha, autora, que figurasse como compradora. 


Deve ter seus motivos para não ter nada no nome" (f. 138).


Destarte, por qualquer ângulo que se analise a questão, deve ser declarada a nulidade do ato e mantida a r. sentença. Insta registrar não ser o caso de decadência, por se tratar de ato nulo e que não convalesce com o tempo, nos termos do art. 169 do Código Civil.


Por outro lado, não há falar em restituição do valor pago, visto que, como mencionado pela testemunha supracitada, tratando-se de ato simulado, não houve pagamento de qualquer valor.


Isso posto, nego provimento ao recurso, mantendo-se incólume a r. sentença hostilizada.


Custas recursais, pela apelante.


Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Saldanha da Fonseca e Domingos Coelho.


Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG