Artigo – É inconstitucional a distinção entre cônjuge e companheiro para fins sucessórios – Por Walsir Edson Rodrigues Júnior

Encontra-se suspenso no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694/MG, no qual se discute a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que conferiu ao companheiro direitos sucessórios distintos daqueles outorgados ao cônjuge sobrevivente. Até o momento, 7 ministros já votaram pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia) e um ministro votou pela constitucionalidade da referida norma (Dias Toffoli). No dia 30/03/17, o pedido de vista do ministro Marco Aurélio suspendeu novamente o julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694/MG.

 

O cerne da questão é saber se é legítimo o tratamento desigual entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios.

 

No Brasil, foi a partir da Constituição da República de 1988 que, expressamente, para além do casamento, foram reconhecidas como entidades familiares duas formações outrora ignoradas: a união estável e a família monoparental. Contudo, não se pode dizer que o ordenamento somente destina tutela a tais entidades familiares. O que o sistema jurídico – instaurado pela Carta Magna de 1988 – quer proteger, no que diz respeito à família, é a comunhão afetiva que promove a formação pessoal de seus componentes, seja sob qual forma for que esta se apresente e de que origem for.

 

Contudo, o fato de um relacionamento afetivo enquadrar-se no gênero família não significa dizer que irá receber o mesmo tratamento dispensado às várias espécies existentes, pois cada família possui suas peculiaridades e, por isso, a necessidade de regras próprias.

 

Evidentemente, diante da pluralidade de entidades familiares geradoras de efeitos jurídicos diversos, duas premissas devem ser assentadas: uma premissa é a de que não há hierarquia entre tais entidades, visto que todas servem de recurso para o livre desenvolvimento da personalidade de seus membros igualmente dignos; outra é de que o sujeito possui a liberdade de escolha entre formar ou não uma família e, mais do que isso, de definir qual o tipo de modelo familiar irá adotar.

 

O casamento é a única entidade familiar que depende da participação prévia do Estado – por meio do processo de habilitação e da celebração – para a sua constituição, sob pena de inexistência.

 

Todas as outras espécies de família – tais como, a união estável e a família monoparental – exigem do ordenamento jurídico mero reconhecimento tão logo se apresentem instituídas, de fato. A interferência estatal, quando necessária, dá-se posteriormente e para simplesmente verificar a existência dos elementos caracterizadores da entidade familiar.

 

A despeito do atual reconhecimento e disciplinamento legal que recebe, a união estável ainda é fonte fértil de dúvidas. E isso acontece basicamente porque, internamente – na relação afetiva estabelecida entre os companheiros –, é muito semelhante ao casamento. Contudo, externamente – em relação a terceiros –, os efeitos jurídicos podem ser diferentes.

 

Percebe-se, então, uma importante diferença entre a união estável e o casamento quanto à forma de instituição. Por ser uma união formal, o casamento, uma vez realizado, por si só, institui a família. Já a união estável – união informal – necessita preencher alguns requisitos substanciais estabelecidos em lei (art. 1723 do CC) tendo, assim, existência precedente ao seu reconhecimento jurídico como entidade familiar.

 

Diante desse fato é possível identificar alguns efeitos jurídicos distintos e legítimos entre cônjuges e companheiros. Como exemplos podem ser citadas a presunção legal de paternidade e a vênia conjugal para a prática de certos atos da vida civil, presentes no casamento e ausentes na união estável.

 

Os filhos concebidos na constância do casamento presumem-se do marido (art. 1.597 do CC). Algumas situações em que se aplica a presunção de paternidade pressupõem a prévia certificação jurídica da existência ou do término da relação conjugal, e isso só está presente, em princípio, no casamento. Apenas este compreende uma prova pré-constituída, qual seja, a certidão de casamento. Ao revés, a união estável representa uma situação fática que escapa de qualquer controle jurídico prévio, o que inviabiliza a aplicação das hipóteses de presunção de paternidade descritas nos incisos I e II do art. 1.597 do CC.[1]

 

Outro efeito distinto entre casamento e união estável diz respeito à necessidade de vênia conjugal para a prática dos atos elencados no art. 1.647 do Código Civil. No casamento, alguns atos, a depender do regime de bens adotado, só podem ser praticados, sob pena de anulação, com a autorização do outro cônjuge. Diferentemente, na união estável, independentemente do regime de bens escolhido, crê-se que não se pode impor aos companheiros a exigibilidade de outorga para a prática de quaisquer dos atos descritos no art. 1.647 do Código Civil. É assim porque, como, geralmente, a união estável não compreende formalização constitutiva e consequente publicidade jurídica com efeitos erga omnes, não é razoável exigir que terceiros conheçam sua existência e a respectiva necessidade de providenciar a autorização do consorte, sob pena de invalidade do negócio jurídico.

 

Evidencia-se que as diferenças entre casamento e união estável até aqui estudadas são legítimas, pois estão diretamente ligadas à substancial diferença entre as duas entidades familiares, qual seja: a prova pré-constituída do ato jurídico presente no casamento e inexistente na união estável. Além disso, tais diferenças são externas, ou seja, em relação a terceiros.

 

Contudo, internamente, as duas entidades familiares não se diferenciam, pois a qualidade do vínculo afetivo que proporciona o livre desenvolvimento da personalidade dos membros dessas famílias é o mesmo. Além disso, o princípio da solidariedade familiar está presente nas duas entidades familiares. Assim, tendo em vista essas características internas comuns, diversos direitos e deveres oriundos do casamento e da união estável são estabelecidos de maneira idêntica pelo ordenamento jurídico. Exemplificativamente, citam-se os direitos previdenciários e o direito a alimentos entre cônjuges e companheiros. Aqui, a solenidade que existe no ato constitutivo do casamento e a informalidade na constituição da união estável não inviabilizam a estipulação de regras igualitárias para os membros das duas entidades familiares.

 

E as regras sucessórias causa mortis? Até o Código Civil de 2002 o tratamento dispensado entre os cônjuges e os companheiros para fins sucessórios era muito similar. Contudo, a partir do novo Código Civil, foram estabelecidas regras sucessórias completamente diferentes para os cônjuges e os companheiros.

 

Para o companheiro sobrevivente o texto legal dispõe, in verbis:

 

Art. 1790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

 

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

 

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daqueles;

 

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

 

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

 

Já o cônjuge supérstite, segundo a ordem de vocação hereditária disciplinada no atual Código Civil, foi contemplado como herdeiro, nos seguintes termos:

 

Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

 

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;


II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

 

III – ao cônjuge sobrevivente;

 

IV – aos colaterais.

 

Art. 1.832 – Em concorrência com os descendentes (artigo 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer.

 

Art. 1.837 – Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.

 

Art. 1.838 – Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.

 

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

 

Do confronto dos dispositivos legais supramencionados, resta claro que, na falta de descendentes e ascendentes do de cujus, o companheiro sobrevivente poderá receber apenas um terço da herança que couber aos colaterais. Já o cônjuge supérstite, em hipótese alguma terá que dividir a herança com os colaterais do falecido.

 

Várias outras diferenças entre a sucessão do cônjuge e a sucessão do companheiro podem ser apontadas, tais como: a) A possibilidade de concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do autor da herança a depender do regime de bens do casamento. Já a concorrência do companheiro sobrevivente com os descendentes do autor da herança não depende do regime de bens, mas da forma como o patrimônio que está sendo inventariado foi adquirido; b) O cônjuge sobrevivente foi promovido ao status de herdeiro necessário, diferentemente do companheiro sobrevivente, que é considerado herdeiro facultativo.

 

Para os defensores da legitimidade do tratamento sucessório diferenciado entre cônjuges e companheiros, é a própria Constituição que autoriza a distinção ao proclamar que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (art. 226, §3º, CR/88). De sorte que não haveria de estabelecer facilidade para conversão de um instituto em outro, se o Constituinte não os considerasse figuras jurídicas diferentes.

 

Não se nega que casamento e união estável são entidades familiares distintas. Contudo, conforme já esclarecido, a distinção decorre exclusivamente da forma de constituição: uma formal e a outra informal.

 

É claro que a informalidade presente na união estável acaba gerando mais insegurança em relação à certificação do relacionamento afetivo, o início dos efeitos patrimoniais e sua eficácia em relação a terceiros, conforme já demonstrado. Tem-se, então, que a facilitação da conversão da união estável em casamento determinada pela Constituição deve ser entendida apenas como uma faculdade aos companheiros que pretendem dar mais segurança jurídica à relação afetiva, apenas isso.[2]

 

Portanto, a possibilidade de conversão dos institutos – que é mera faculdade conferida aos próprios companheiros – não pode servir de justificativa para eventuais tratamentos discriminatórios ilegítimos entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios, pois vulnera o princípio constitucional da igualdade e a sua premissa mais aceita que não tem nada de moderna: tratar os iguais de maneira igual, e os desiguais na medida de sua desigualdade.

 


Reitera-se, ainda, que o sujeito possui a liberdade de escolha entre formar ou não uma família e, mais do que isso, de definir qual o tipo de modelo familiar irá adotar. Na hipótese de tratamento desigual entre cônjuges e companheiros para fins sucessórios, a liberdade na escolha do tipo de família estará comprometida, conforme constatou o ministro Roberto Barroso:

 

[…] não há dúvida de que a opção de constituir uma família, bem como de adotar uma determinada forma de constituição familiar é uma das mais relevantes decisões existenciais. Trata-se de uma questão que toca a intimidade de cada indivíduo, de sua vontade de seguir (ou não) tradições, crenças e sonhos, e de viver sua união segundo a sua própria concepção de vida boa. Porém, quando o Código Civil cria regimes sucessórios diversos para os casais casados e para os que vivem em união estável, restringe-se inequivocamente a autonomia de optar por um ou outro regime. Considerando-se que, na quase totalidade dos casos, o companheiro terá menos direitos sucessórios em relação ao cônjuge, o ordenamento jurídico impõe um ônus maior às famílias em união estável. Assim, acaba-se induzindo quem deseja viver em união estável a adotar o modelo do casamento, por receio de que seus parceiros não venham a fazer jus ao regime sucessório devido.[3]

 

Além disso, qualquer tratamento sucessório diferenciado entre cônjuges e companheiros contraria as diretrizes da sucessão legítima. A teoria mais conhecida e aceita sobre o fundamento principiológico da sucessão legítima e da ordem de vocação hereditária, conferida pela Lei Civil, é a que lhes atribui a vontade presumida do falecido, o qual, se a tivesse manifestado, razoavelmente disporia de seus bens a partir daquela ordem, porquanto graduaria a sucessão da mesma forma que gradua suas afeições. [4]

 

Portanto, é correto afirmar que a ordem de vocação hereditária visa a preservar uma espécie de sucessão por afeição e por solidariedade familiar. E, definitivamente, o vínculo afetivo existente entre cônjuges e entre companheiros não serve para justificar um tratamento desigual entre eles na ordem de vocação hereditária, pois a afeição é a mesma.

 

Com efeito, uma ordem de vocação hereditária para o companheiro diferenciada daquela prevista para o cônjuge atenta contra a Constituição da República de 1988, especialmente contra o art. 226 – que concedeu a mesma especial proteção estatal a todas as famílias lá previstas –, e o caput do art. 5º -, porquanto não admite tratamento desigual à união estável exatamente no aspecto em que se iguala ao casamento, ou seja, no vínculo afetivo decorrente da relação familiar.

 


[1] Art. 1.597 do Código Civil: “Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; […].

 

[2] TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 358.

 

[3] Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/sucessao-companheiro-voto-barroso.pdf Acesso em: 16 maio 2017.

 

[4] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. p. 153-154.

 


Walsir Edson Rodrigues Júnior é advogado, doutor e mestre em Direito pela PUC Minas, professor de Direito Civil na PUC Minas e na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

 

 

Fonte: Conjur