Artigo – É o fim da interdição? – Por Pablo Stolze

1. INTRODUÇÃO

 

Ainda será sentido o profundo impacto da Lei 13.146 de 06 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência -, a partir, especialmente, da jurisprudência que se formará ao longo dos próximos anos.

 

Esta Lei, como já tive a oportunidade de observar[1], nos termos do parágrafo único do seu art. 1º, tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3o do art. 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.

 

Pela amplitude do alcance de suas normas, o Estatuto traduziu uma verdadeira conquista social, ao inaugurar um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis.

 

A partir de sua entrada em vigor, a pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do seu art. 2º – não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa.

 

Ainda que, para atuar no cenário social, precise se valer de institutos assistenciais e protetivos como a tomada de decisão apoiada ou a curatela, a pessoa deve ser tratada, em perspectiva isonômica, como legalmente capaz.

 

Por óbvio, uma mudança desta magnitude – verdadeira "desconstrução ideológica" – não se opera sem efeitos colaterais, os quais exigirão um intenso esforço de adaptação hermenêutica[2].

 

Mas, certamente, na perspectiva do Princípio da Vedação ao Retrocesso, lembrando Canotilho, a melhor solução será alcançada.

 

O que não aceito é desistir desta empreitada, condenando o Estatuto ao cadafalso da indiferença em virtude de futuras dificuldades interpretativas.

 

2. O ESTATUTO E A CAPACIDADE CIVIL

 

Como salientei, com a entrada em vigor do Estatuto, a pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do art. 2º – não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa:

 

Art. 6o  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive[3] para:

 

I – casar-se e constituir união estável;

 

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

 

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

 

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

 

V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

 

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

 

Art. 84.  A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

 

Esse último dispositivo é de clareza meridiana: a pessoa com deficiência é legalmente capaz, ainda que pessoalmente não exerça os direitos postos à sua disposição.

 

Poder-se-ia afirmar, então, que o Estatuto inaugura um novo conceito de capacidade, paralelo àquele previsto no art. 2º do Código Civil[4]?

 

Em meu sentir, não há um novo conceito, voltado às pessoas com deficiência, paralelo ao conceito geral do Código Civil.

 

Se assim o fosse, haveria um viés discriminatório que a nova Lei exatamente pretende acabar.

 

Em verdade, o conceito de capacidade civil foi reconstruído e ampliado.

 

Com efeito, dois artigos matriciais do Código Civil foram reestruturados.

 

O art. 3º do Código Civil, que dispõe sobre os absolutamente incapazes, teve todos os seus incisos revogados, mantendo-se, como única hipótese de incapacidade absoluta, a do menor impúbere (menor de 16 anos).

 

O art. 4º, por sua vez, que cuida da incapacidade relativa, também sofreu modificação. No inciso I, permaneceu a previsão dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o inciso II, por sua vez, suprimiu a menção à deficiência mental, referindo, apenas, “os ébrios habituais e os viciados em tóxico”; o inciso III, que albergava “o excepcional sem desenvolvimento mental completo”, passou a tratar, apenas, das pessoas que, "por causa transitória ou permanente, não possam exprimir a sua vontade"; por fim, permaneceu a previsão da incapacidade do pródigo.

 

Nesse contexto, faço uma breve reflexão.

 

Não convence inserir as pessoas sujeitas a uma causa temporária ou permanente, impeditiva da manifestação da vontade (como aquela que esteja em estado de coma), no rol dos relativamente incapazes.

 

Se não podem exprimir vontade alguma, a incapacidade não poderia ser considerada meramente relativa.

 

A impressão que tenho é a de que o legislador não soube onde situar a norma.

 

Melhor seria, caso não optasse por inseri-lo no próprio artigo art. 3º (que cuida dos absolutamente incapazes), consagrar-lhe dispositivo legal autônomo.

 

Considerando-se o sistema jurídico tradicional, vigente por décadas,  no Brasil, que sempre tratou a incapacidade como um consectário quase inafastável da deficiência, pode parecer complicado, em uma leitura superficial, a compreensão da recente alteração legislativa. 

 

Mas uma reflexão mais detida é esclarecedora.

 

Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada" como incapaz, para ser considerada – em uma perspectiva constitucional isonômica – dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada[5] e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil.

 

3. O ESTATUTO E A CURATELA

 

De acordo com este novo diploma, a curatela, restrita a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, passa a ser uma medida extraordinária (art. 85):

 

Art. 85.  A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

 

§ 1o  A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

 

§ 2o  A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.

 

§ 3o  No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado. (grifei)

 

Note-se que a lei não diz que se trata de uma medida "especial", mas sim, "extraordinária", o que reforça a sua excepcionalidade.

 

E, se é uma medida extraordinária, é porque existe uma outra via assistencial de que pode se valer a pessoa com deficiência – livre do estigma da incapacidade – para que possa atuar na vida social: a "tomada de decisão apoiada", processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.

 

Pessoas com deficiência e que sejam dotadas de grau de discernimento que permita a indicação dos seus apoiadores, até então sujeitas a uma inafastável interdição e curatela geral, poderão se valer de um instituto menos invasivo em sua esfera existencial.

 

Note-se que, com isso, a autonomia privada projeta as suas luzes em recantos até então inacessíveis.

 

4. É O FIM DA INTERDIÇÃO?

 

Afinal, o Estatuto pôs fim à interdição?

 

É preciso muito cuidado no enfrentamento desta questão.

 

O Prof. Paulo Lôbo, em excelente artigo[6], sustenta que, a partir da entrada em vigor do Estatuto, "não há que se falar mais de 'interdição', que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos".

 

Esta afirmação deve ser adequadamente compreendida.

 

Explico o meu ponto de vista.

 

Na medida em que o Estatuto é expresso ao afirmar que a curatela é extraordinária e restrita a atos de conteúdo patrimonial ou econômico, desaparece a figura da "interdição completa" e do "curador todo-poderoso e com poderes indefinidos, gerais e ilimitados".

 

Mas, por óbvio, o procedimento de interdição (ou de curatela)[7] continuará existindo, ainda que em uma nova perspectiva, limitada aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial, como bem acentuou Rodrigo da Cunha Pereira. [8]

 

É o fim, portanto, não do "procedimento de interdição”, mas sim, do standard tradicional da interdição, em virtude do fenômeno da “flexibilização da curatela”, anunciado por Célia Barbosa Abreu[9].

 

Vale dizer, a curatela estará mais “personalizada”, ajustada à efetiva necessidade daquele que se pretende proteger.

 

Aliás, fixada a premissa de que o procedimento de interdição subsiste, ainda que em uma nova perspectiva, algumas considerações merecem ser feitas, tendo em vista a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.

 

Flávio Tartuce[10], com propriedade, ressalta a necessidade de se interpretar adequadamente o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o CPC-15, para se tentar amenizar os efeitos de um verdadeiro "atropelamento legislativo".

 

E a tarefa não será fácil, na medida em que o novo CPC já surgirá com muitos dispositivos atingidos pelo Estatuto.

 

Dou como exemplo o artigo do Código Civil que trata da legitimidade para promover a interdição (art. 1.768), revogado pelo art. 747 do CPC-15.

 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por seu turno, ignorando a revogação do dispositivo pelo novo CPC – observou Fredie Didier Jr.[11] – acrescentou-lhe um novo inciso (art. 1.768, IV, CC), para permitir que a própria pessoa instaure o procedimento de curatela.

 

Certamente, a conclusão a se chegar é no sentido de que o art. 747 do CPC vigorará com este novo inciso.

 

Será um intenso exercício de hermenêutica que deverá ser guiado sempre pelo bom senso.

 

5. O ESTATUTO E AS INTERDIÇÕES EM CURSO       

 

Para bem compreendermos este ponto, é necessária uma incursão na Teoria Geral do Direito Civil.

 

Isso porque o Estatuto alterou normas que dizem respeito ao “status" da pessoa natural, tema sobre o qual já tivemos a oportunidade de escrever:

 

"O estado da pessoa natural indica sua situação jurídica nos contextos político, familiar e individual.

 

Com propriedade, ensina ORLANDO GOMES que ‘estado (status), em direito privado, é noção técnica destinada a caracterizar a posição jurídica da pessoa no meio social’.

 

Seguindo a diretriz traçada pelo mestre baiano, três são as espé­cies de estado:

 

a) estado político — categoria que interessa ao Direito Constitucional, e que classifica as pessoas em nacionais e estrangeiros. Para tanto, leva-se em conta a posição do indivíduo em face do Estado;

 

b) estado familiar — categoria que interessa ao Direito de Família, considerando as situações do cônjuge e do parente. A pessoa poderá ser casada, solteira, viúva, divorciada ou judicialmente separada, sob o prisma do direito matrimonial. Quanto ao parentesco, vinculam-se umas às outras, por con­sanguinidade ou afinidade, nas linhas reta ou colateral. O estado familiar leva em conta a posição do indivíduo no seio da família. Note-se que, a despeito de a união estável também ser considerada entidade familiar, desconhece-se o estado civil de 'concubino ou convivente', razão pela qual não se deve inserir essa condição na presente categoria;

 

c) estado individual — essa categoria baseia-se na condição física do indivíduo influente em seu poder de agir. Considera-se, portanto, a idade, o sexo e a saúde. Partindo-se de tal estado, fala-se em menor ou maior, capaz ou incapaz, homem ou mulher”.[12]

 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, como dito, alterou normas reguladoras de um aspecto fundamental do “estado individual” da pessoa natural: a sua capacidade.

 

E, tais normas, por incidirem na dimensão existencial da pessoa física, têm eficácia e aplicabilidade imediatas.

 

Com efeito, estando em curso um procedimento de interdição – ou mesmo findo – o interditando (ou interditado) passa a ser considerado, a partir da entrada em vigor do Estatuto, pessoa legalmente capaz.

 

Mas, como analisamos linhas acima, é importante observar que a interdição e a curatela  – enquanto “procedimento" e “instituto assistencial”, respectivamente – não desapareceram, havendo, em verdade, experimentado uma flexibilização.

 

Vale dizer, não sendo o caso de se converter o procedimento de interdição em rito de tomada de decisão apoiada, a interdição em curso poderá seguir o seu caminho, observados os limites impostos pelo Estatuto, especialmente no que toca ao termo de curatela, que deverá expressamente consignar os limites de atuação do curador, o qual  auxiliará a pessoa com deficiência apenas no que toca à prática de atos com conteúdo negocial ou econômico.

 

O mesmo raciocínio é aplicado no caso das interdições já concluídas.

 

Não sendo o caso de se intentar o levantamento da interdição ou se ingressar com novo pedido de tomada de decisão apoiada, os termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos, embora a sua eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão ser interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e autorizar o curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais.

 

Seria temerário, com sério risco à segurança jurídica e social, considerar, a partir do Estatuto, “automaticamente" inválidos e ineficazes os milhares – ou milhões – de termos de curatela existentes no Brasil.

 

Até porque, como já salientei, mesmo após o Estatuto, a curatela não deixa de existir.

 

Finalmente, merece especial referência a previsão da denominada “curatela compartilhada”, constante no art. 1.775-A do Código Civil, alterado pelo novo diploma estatutário: "Na nomeação de curador para a pessoa com deficiência, o juiz poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa.”

 

Trata-se de uma previsão normativa muito interessante que, em verdade, tornará oficial uma prática comum.

 

Por vezes, no seio de uma família, mais de um parente, além do próprio curador, conduz a vida da pessoa com deficiência, dispensando-lhe os necessários cuidados.

 

Pois bem.

 

O novo instituto permitirá, no interesse do próprio curatelado, a nomeação de mais de um curador, e, caso haja divergência entre eles, caberá ao juiz decidir, como ocorre na guarda compartilhada.

 

 

Pablo Stolze é mestre em Direito Civil, autor e co-autor de várias obras jurídicas, incluindo o Novo Curso de Direito Civil (Saraiva). Atua como professor da Universidade Federal da Bahia, da Escola de Magistrados da Bahia e da Rede Jurídica LFG.

 

 

Fonte: Jus Navigandi